Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso site, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao acessar nosso portal, você concorda com o uso dessa tecnologia. Saiba mais em nossa Política de Privacidade.

16 de abril de 2024

Cearenses alienígenas


Por Rafael Donadio / Coluna "Ao pé duvido" Publicado 28/08/2019 às 14h43 Atualizado 24/02/2023 às 01h20
 Tempo de leitura estimado: 00:00

Visceral. É assim que podemos definir o passeio da banda Jonnata Doll e os Garotos Solventes por São Paulo, descrito nas dez faixas do novo disco, Alienígena, o terceiro dos cearenses radicados na capital paulista. São verdades indesejadas do cotidiano esmagador do centro de São Paulo, dando voz, principalmente, a todos os inadequados que convivem em meio a degradação urbana de uma das maiores cidades do mundo.

É a voz de um trabalhador que precisa de “aditivos” para aguentar a rotina fatigante de um dia de trabalho, em Trabalho Trabalho Trabalho, ou de uma heroína, que em uma noite fria mija no meio da rua e compra cocaína ruim na rua Paim, em Edifício Joelma. Como bem descrevem na faixa punk psicodélica Filtra-me: “Sou um ruído que sempre sujou a imagem crua que você nunca mostrou.”

A produção de Fernando Catatau, da banda Cidadão Instigado, é notada nas guitarras e na sonoridade psicodélica, bem presentes em Vale do Anhangabaú, Derby Azul e Edifício Joelma. Alienígena foi lançado pelo selo Risco e conta ainda com as participações de Marcelle Equivocada, Ava Rocha, Guizado, o próprio Catatau, Murilo Sá e Clemente.

No Ceará, Doll e os solventes já eram vistos como aliens, como declarou o vocalista em entrevista ao Verso. Ele chegou, inclusive, a ser considerado autista na escola. Depois da mudança para o Sudeste, em meados de 2014, a história não foi diferente. Daí que surge o nome do disco e todas as histórias narradas nas composições: são visões de “aliens nordestinos em SP”. E não é apenas uma autobiografia, mas também a indignação frente aos recentes acontecimentos políticos e “como eles alteram nossa vida em comum”. Situações bem evidentes nas faixas Matou a Mãe e Volume Morto.

Escute, abaixo, o disco na íntegra e acompanhe o faixa a faixa feito por eles:

FAIXA A FAIXA

1. MATOU A MÃE (JONNATA DOLL)

Uma mesa de bar, homens nos quatro cantos, meia idade, blusa de botão, cerveja, jornal sensacionalista na TV ligada, senso comum, frases e piadas feitas quando o freak passa. Uma ação da milícia, um assassinato num barracão à beira da marginal, sangue escorre pela porta, mãos pretas de mulher estiradas para fora da janela, uma cadela morta amarrada em uma corda inutilmente presa a um toco e um pôster do presidente de extrema direita ainda pode ser visto na frente do barraco. O sangue escorre para o rio…

“Ah ele quer se sentir à vontade para fazer piada de preto e gay / Ah ele que sentir à vontade para deixar mulheres em submissão / Ah ele quer comprar um revólver para atirar num pobre no sinal / Aí matou a mãe, a irmã, a avó, a cadela aí… / Depois vieram e mataram ele.”

 

2. EDIFÍCIO JOELMA (JONNATA DOLL / EDSON VAN GOGH)

Depois de uma madrugada de excessos, a heroína sai pela cidade sem acreditar em nada, abre as pernas e mija no meio do povo começando o dia, o rio de mijo se mistura ao rio subterrâneo quando desce pela boca de lobo enquanto ela segue pela calçada, passa por mendigos, travestis viradas cheias de mãos e compra cocaína ruim na rua Paim. Agora segue até a quitinete na Rego Freitas, sobe o elevador sem acreditar em nada, ver os amigos com quem mora e pensa em algo para dizer, mas não há nada, ele ver um amigo requentando o café e o outro chupando alguém na cama, ela ver chamas nesta cama e sonha com o incêndio do edifício Joelma.

 

3. BABY (JONNATA DOLL)

O passageiro sonha com uma vida na cidade que abandona, com o amor que o abandonou. Fuma e acaricia um gato na parada do Graal, enquanto espera que o motorista acabe seu lanche.

 

4. TRABALHO TRABALHO TRABALHO (JONNATA DOLL)

Diz incisiva a voz de locutor numa propaganda de rádio, através dos fones diretamente para o ouvido de nosso herói anônimo, forçado a vestir um terno no sol quente e encarar a mesma rotina de idas e vindas em ônibus e metrôs lotados, mais as horas intermináveis no trabalho, de segunda a sábado. Para matar a solidão e o tédio ele enche a cara com a bebida mais barata e gasta todo o tempo de folga jogando videogame e assistindo séries de heróis.

 

5. FILTRA-ME (JONNATA DOLL)

O herói entra na farmácia e esconde frascos de elixir paregórico na mochila. Com uma seringa, ele injeta uma dose na veia do dedão do pé esquerdo e olha para a cidade através do buraco que um dia foi a janela do quinto andar do prédio velho ocupado, enquanto vai ficando vermelho gradualmente da cabeça aos pés.

“Sou um ruído que sempre sujou a imagem crua que você nunca mostrou.”

 

6. VALE DO ANHANGABAÚ (JONNATA DOLL)

Alguém vai comprar chá com a comunidade de moradores de rua que vivem embaixo do viaduto do chá. Uma punk lhe oferece uma balinha, assim que o carro da polícia se afasta devagar. Em seguida, estranhos objetos surgem no céu e acontece um contato imediato de terceiro grau.

 

7. VAI-VAI (JONNATA DOLL)

Um gato preto gigante dança enquanto devora um homem vestido de rato a partir de suas pernas em frente a vai-vai.

Este é o sonho de um gato que dorme enquanto uma festa regada a cocaína rola em um apartamento.

 

8. DERBY AZUL (JONNATA DOLL & OS GAROTOS SOLVENTES)

Um casal bebe cerveja em frente a um estacionamento enquanto são observados por um gato preso atrás de uma tela em uma janela no segundo andar do prédio em frente, um hippie punk oferece bijuteria interrompendo um beijo do casal, que começa a se desfazer em uma névoa.

 

9. VOLUME MORTO (JONNATA DOLL / BIAGIO PICORELLI)

Um rio segue por baixo de uma avenida onde desfilam uma série de figuras bizarras conservadoras batendo panelas: Rebordosas de verde e amarelo, senhores de escravos, caçadores arrastando jaguatiricas mortas, negros vestindo balaclavas da Klux Klux Klan e centenas de núcleos familiares enlouquecedoramente idênticos (Um pai gordo branco de bermudas usando relógio de ouro, uma perua de sorriso congelado e uma criança gorda com um iPhone).

“Aonde está o Bob Cuspe para nessas panelas escarrar / E os piratas do tietê para os coxinhas atacar e pilhar? / As Rebordosas estão caretas, com as calcinhas estampando a bandeira / Ontem puderam se vestir de nazista e desfilar pela Paulista / E ainda existe guerra de classes, rolando enquanto se fuma crack.”

 

10. MÚSICA DE CAPS (JONNATA DOLL)

Uma paciente internado em uma clínica conversa com o fantasma do Belchior no jardim, o muro alto que lhe prende é ornado por centenas de minúsculas cabeças de gueixas que cantam em uníssono: tchu ru tchu tchu

Pauta do Leitor

Aconteceu algo e quer compartilhar?
Envie para nós!

WhatsApp da Redação