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19 de abril de 2024

O Porteiro


Por Victor Simião Publicado 31/10/2019 às 17h00 Atualizado 24/02/2023 às 21h05
 Tempo de leitura estimado: 00:00

O então porteiro do meu prédio sabia que eu não tinha nada a esconder. Embora já tenhamos tido problemas, nada foi tão grave a ponto de ter destaque no Jornal Nacional. Não fosse um dia que ele me ligou para passar um sermão, não seríamos amigos hoje.

– Senhor Victor, esta é quarta vez que ligo e peço gentilmente para o senhor abaixar o volume – o Erasmo me disse, via interfone. Se não desligar, eu terei de tomar satisfação pessoalmente.

Nada fiz. Dez minutos depois, Erasmo batia em minha porta. Como eu já imaginava que isso fosse acontecer, deixei a arapuca armada. O aparelho de som tocava um clássico.

“Você meu amigo de fé, meu irmão camarada/Amigo de tantos caminhos e tantas jornadas/Cabeça de homem mas o coração de menino.”

Abri a porta.

– Você sabia que o Roberto fez essa música em homenagem ao Erasmo Carlos?

Erasmo – o porteiro – disse que não sabia, mas que o pai tinha lhe dado o nome que carregava em homenagem ao Tremendão e colocava essa música para eles dois, pai e filho, ouvirem e selarem a amizade verdadeira.

– Meu coração chega a doer de saudade, senhor Victor.

Convidei-o a entrar no apartamento, e passamos o resto da madrugada de domingo ouvindo os álbuns dos anos 1960 e 1970 do Roberto Carlos, bebendo whisky e tentando ao máximo não passar calor.

***

Quando contei a minha analista o que havia se passado naquela semana, ela disse que não via tristeza ou amarguras na história.

– Não entendo o motivo pelo qual você traz esse relato aqui, Victor. Qual o problema?
– O porteiro foi mandado embora pouco tempo depois, Márcia. Sinto que a culpa é minha.

Minha analista, aí, disse que essa deveria ter sido uma pauta superada.

– Victor, você ainda não entendeu que você não pode ser o responsável pela tristeza das pessoas? A vida é mais complexa do que isso: uma ex-namorada não pode te culpar pelas tristezas que carrega, um ex-colega de trabalho não pode dizer que não foi promovido por sua culpa. Eu sei, claro, que essa sua geração dos 20 e tantos anos não sabe lidar com frustração, acha que o mundo será uma maravilha, que o Twitter é o muro das lamentações e que qualquer desentendimento no trabalho é motivo para pedir demissão. O mundo, Victor, está cada vez mais kafkiano, as pessoas querem encontrar sempre um bode expiatório. Mas você faz exatamente o contrário, Victor: em vez de colocar a culpa nos outros, culpa a si próprio. O que você acha disso?

Conversamos mais um pouco. Ao término da sessão, fui embora mais leve, mesmo não muito convencido de que eu não tinha culpa na demissão de Erasmo.

***

Um mês depois, o novo porteiro me ligou por volta das 23h de uma terça-feira.

– Senhor Victor, aqui é Cauby, da portaria. Tem um senhor chamado Erasmo querendo falar com o senhor. Posso deixar ele entrar?

Minha vontade foi dizer que só depois que eles fizessem um dueto cantando “Conceição”, mas guardei essa para mim.

– Claro, Cauby.

Minutos depois, lá estava Erasmo em meu apartamento.

– Erasmo, antes de qualquer outra coisa, te peço desculpas. Sinto muito por ter sido o responsável direto pela sua demissão. Eu não deveria ter deixado o som alto aquela noite, nem ter sugerido que a gente ficasse nu na janela cantando para quem quisesse ouvir “Nas curvas da estrada de santos”. Também peço desculpas por ter apoiado a sua ideia de ligar para o síndico após oito doses de whisky. Sinto muito mesmo por não ter te impedido de dizer a ele que iria contar para todo mundo que vocês dois vinham tendo um caso.

Erasmo deu risada e disse que estava ali por dois motivos. O primeiro deles, me agradecer. Não fosse a demissão, não teria recebido o acerto que lhe permitiu visitar o pai em Belém do Pará.

– Eu estava brigado com ele, senhor Victor. Aquela noite me fez repensar minha vida. Quando me mandaram embora, comprei passagem e fui visitar meu pai, lá no norte. Foi a decisão mais sábia que eu pude tomar, porque faz uma semana que ele morreu.

Aí nos abraçamos. Emocionado, eu pensei em beber whisky e ouvir Roberto Carlos com Erasmo para celebrar aquele momento, mas achei melhor não, evitando qualquer tipo de incidente.

O agora meu amigo de fé e irmão camarada me abraçou mais forte e encostou sua boca no meu ouvido.

– A segunda coisa, senhor Victor…
– Han?
– É que quero meu emprego de volta.

Sem saber o que dizer, eu apenas me afastei de Erasmo. Olhando bem nos olhos dele, pedi licença. Um minuto depois, voltei. Ao fundo tocava a música que eu colocara.

“Se você pensa que vai fazer de mim/ O que faz com todo mundo que te ama/ Acho bom saber que pra ficar comigo/ Vai ter que mudar.”

Em minhas mãos, três copos e uma garrafa de Whisky.

Se meu plano desse certo, Cauby me ligaria quatro vezes e depois subiria ao apartamento. Antes mesmo de “Se você pensa” acabar, meu interfone tocou.

***

– O meu plano infalível, Márcia, era fazer Cauby subir ao apartamento e daí tentar reaver o emprego do Erasmo. O problema é que Cauby, na primeira ligação, disse que não gostava de Roberto Carlos, que odiava o próprio nome e por isso não ouvia o Peixoto e que iria chamar a polícia se o som não fosse desligado. Com medo, eu obedeci.
– E o Erasmo?
– Bom, como agora ficou claro que a culpa da demissão era minha, consegui outro emprego para ele.
– E qual é?
– Porteiro de boate.
– Ele tá feliz?
– Muito. É um local que toca músicas antigas. O Erasmo me disse que, quando tiver um especial do Roberto Carlos, irá me convidar para bebermos whisky e não passar calor.
– E você iria, sabendo que se ele beber em trabalho pode ser mandado embora?
– Ah, eu iria.
– E o sentimento de culpa, Victor, que poderá causar em você?
– Deixa para depois, Márcia. É como diz a canção: a cabeça é de homem, mas o coração de menino.

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