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18 de abril de 2024

HÁ MAIS QUE LIXO NO LIXO


Por Rogel Martins Barbosa Publicado 04/06/2019 às 10h00 Atualizado 23/02/2023 às 10h56
 Tempo de leitura estimado: 00:00

Tem um excerto do Sermão do Santíssimo Sacramento, pregado pelo Padre Antônio Vieira, em Santa Engrácia, no ano de 1662, que me chama muito a atenção, onde ele fala de união:

“Toda a vida (ainda das coisas que não têm vida) não é mais que uma união. Uma união de pedras é edifício: uma união de tábuas é navio: uma união de homens é exército. E sem essa união, tudo perde o nome e mais o ser. O edifício sem união é ruína: o navio sem união é naufrágio: o exército sem união é despojo. Até o homem (cuja vida consiste na união de alma e corpo) com união é homem, sem união é cadáver.”

Eu completaria que lixo separado em sacos, esperando coleta, é apenas lixo, lixo mandado a lixão ou a aterro, unido, não é mais lixo, é política!

O resíduo, em especial o sólido urbano, significa muito mais que coletar e dispor, tratar ou destinar, reciclar ou reusar.

Theodore Dalrymple encerra seu livro “Como a sujeira dos outros afeta a nossa vida” com o seguinte parágrafo: “Rastreie o lixo até suas origens e você logo encontra as questões fulcrais da filosofia política, da economia política e até mesmo o sentido da vida.”

Ele tem razão. Sobre o sentido da vida, talvez fosse por isto que no Egito antigo eram os sacerdotes que cuidavam da limpeza urbana.

No lixo há muito mais que o lixo. Há toda a sociedade desnuda e suas decisões, seu modo de vida e de ver a vida. Há poesia no lixo. Foi Bandeira quem escreveu O Bicho:

Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem. (Rio, 27 de dezembro de 1947)

A poesia descreveu a economia, a sociedade. Como um delator, entregou que o lixo não tinha importância ao ser disposto, ficava lá, jogado no pátio, sem cuidado algum. O feio não era problema. O sujo também não era problema e tão pouco o cheiro!

Revelou que não era um lixo inerte, era um lixo orgânico, comestível, que poderia saciar a fome de algum desvalido. Um homem, cuja vida não se distinguia da vida de um bicho. Revelou desperdício de alimento e pouco caso com a fome alheia.

O lixo revela a política do descaso com a saúde pública. Lixo na rua significa mais roedores, como Nova Iorque que gastou mais de 33 milhões de dólares em 2017 para combater ratos. Trinta e três milhões jogados no lixo. Como se a abiogênese derrubada por Pasteur se confirmasse: dois montes de lixo reproduzem pencas de ratos! Mas alguém ganhou com os ratos e, claro, alguém perdeu com os ratos…

Por aqui o lixo rende a indústria do aedes aegypti, com a contratação de pessoas para o serviço público em contratos de programa, em regime celetista, até contratos emergenciais, por dispensa, quando nas epidemias.

Cidades sujas revelam uma sociedade suja, que não tem apreço pelo limpo, pela higiene. Revela uma sociedade bárbara num mundo que deveria ser civilizado.

Revela o quanto a sociedade entregou para o estado seu dever pessoal de higiene. Quanto mais é dever do estado, menos é dever do cidadão. Quanto mais presente o estado, menos eficiente, mais ausente o cidadão. Substituíram o socialismo clássico pelo estado socialista do bem-estar social. O estado pesado que mina o cidadão, tira-lhe tudo, até a dignidade de limpar seu quintal.

O lixo revela o quanto se consome ou o quanto não se pode consumir. Revela crises financeiras. Revela crises alimentares. Revela crises humanas. Vejam se não é o resíduo urinário que mal tratado como esgoto não está levando a contaminação de rios com hormônios e remédios os mais variados, esterilizando população de peixes. Este resíduo revela uma política ineficiente do tratamento de esgoto, mas revela também uma sociedade doente e uma indústria farmacêutica pujante.

Roma jogava corpos na cloaca máxima, revelando o desprezo pelo ser humano. Hoje se quer compostar seres humanos, numa versão moderna de se jogar corpos na cloaca máxima.

O lixo revela corrupção em contratos públicos. Passe um pente fino e verá. A #HistoriaDosResiduos mais de uma vez nos contou parcerias entre o lixo e organizações criminosas. Não é privilégio de um país ou de uma época.

O lixo revela cartéis, como o Phoebus, que talvez já tenha apagado suas luzes.

O lixo revela o desânimo com o futuro. Qual o sentido de se preocupar com o lixo, quando não há esperança para o ser humano? O lixo revela governos ineficientes e também políticos que se aproveitam do lixo, para manterem seu curral eleitoral cevado, cheio de vermes, pedindo consulta médica e ambulância.

O lixo revela o quanto significamos ou somos insignificantes para governos. Quando não importa, se joga o lixo por baixo do tapete e ninguém toca no assunto. É o caso do ponto Nemo, onde lixo espacial é jogado, mas ninguém sabe exatamente quanto e nem tão pouco o impacto disto. A razão? Só os governos jogam lixo lá.

Mas através do lixo dá para pôr controle sobre a população. Primeiro se faz um alarde sobre determinado produto o chamando de lixo, depois, se permite que uma câmara municipal proíba seu consumo. Um ato inofensivo de ataque a uma liberdade. Mas depois que uma liberdade foi solapada em nome da redução do lixo, que o próprio governo não faz, é pavimentado o caminho para o ataque e enjaulamento de mais liberdades. Hoje a câmara nos diz o que não podemos ter, amanhã nos dirá o que devemos consumir.

O lixo esconde e revela desejos, ciência e alquimia. Preste muita atenção no lixo e você verá muito mais que lixo.

Rogel Martins Barbosa, advogado, professor do Curso História dos Residuos e autor, entre outras obras, do Politica Nacional de Residuos Sólidos Urbanos – Guia de orientação para municipios.

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