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17 de abril de 2024

LIXO É POLUIÇÃO?


Por Rogel Martins Barbosa Publicado 31/07/2019 às 10h00 Atualizado 23/02/2023 às 17h10
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Se você achou que a pergunta é descabida, responda-me primeiro: lixo é poluição? Se disser é óbvio que sim, eu direi talvez! E você espantado me perguntaria: como assim? Bom, antes de responder, já descobriu que a pergunta não era descabida.

Se você olhar os resíduos pela lente do direito ambiental, você vai estar correto, porque até este momento os resíduos são tratados pelo direito ambiental como fonte de poluição. Mas isto foi até agora. Agora nós temos um ramo do direito que veio corrigir esta visão e dar o envelope correto à dinâmica com que os resíduos devem ser tratados.

Antes de falar do agora, vou contar um pouco da #HistoriaDosResiduos. Até a ciência chegar aos micro-organismos, lixo ou resíduo, só foi problema quando exalava odores. Desta forma, lá na pré-história, em Skara Brae, hoje Escócia, por exemplo, os moradores jogavam o lixo junto as paredes externas de suas casas. No frio o lixo dava conforto térmico, já que o processo de compostagem ao lado das paredes elevava a temperatura. Antes que me esqueça, lixo naquela época era basicamente orgânico.

Se andarmos mais um pouco, agora na antiguidade, vemos os hebreus muito zelosos de seu lixo, não mantendo nunca dentro de seu arraial ou cidade. Eles são os pioneiros no uso de aterros sanitários, inclusive com o uso de taludes. Na mesma antiguidade, gregos se preocupavam em lançar o lixo a quase dois quilômetros de distância, mas isto não os impedia de elevarem o nível de suas ruas secundárias pela disposição de resíduos… Romanos fizeram o maior sistema de esgotamento sanitário da antiguidade, a famosa cloaca máxima, mas ainda jogavam lixo das janelas diretamente nas ruas. Aprenderam a cobrar através do cloacarium.

A idade média aceitou jogar lixo em casa, ao ponto de seus assoalhos se elevarem com o sanduíche resíduos/tapete/resíduos/tapete… A rua sempre foi um excelente descarte. Mas as cidades eram pequenas e organizadas e pelo cheiro ou incômodo que promoviam, eram as atividades distanciadas do centro para as margens. Foi ao final muito preocupada com o asseio pessoal (banho) e saúde (muitos hospitais).

Idade moderna foi mais suja a princípio, depois melhorou, mas ainda assim pessoas morriam por problemas com o saneamento.

Idade contemporânea, veio a microbiologia, veio o movimento sanitarista e então as coisas mudaram. Lixo não era mal pelo que exalava, era mal pelo que continha.

Nesta história toda, já existiam leis sobre resíduos. Mas eram apenas leis, não classificadas como direito ambiental ou como direito dos resíduos. Os hebreus tinham sua lei escrita no Pentateuco sobre a obrigação de manter seu arraial sem resíduos. Os romanos editaram lei para proibir o costume de jogar lixo pelas janelas, principalmente das insulaes. Na idade média temos cidades que através de lei criaram sistema de coleta pública e obrigação de dispor o resíduo em recipientes específicos para serem coletados. Vale lembrar, Avignon, em 1243, editou lei que proibiu jogar lixo pela janela. Cambridge, em 1338, edita primeira lei sanitária inglesa proibindo jogar lixo em valas e em corpos d’água. Praga, em 1340, tem serviço regular de coleta de lixo.

Idade moderna temos, em 1671, Stettin, lei que obriga a população acondicionar os resíduos em tonéis e é cobrado uma taxa por isto. No Brasil seiscentista, São Paulo, através de decreto real, a limpeza da praça nas datas comemorativas, cabia aos moradores próximos. Havia lei que determinava onde jogar o lixo.

Já na idade contemporânea, em 1848 é editada a lei do estorvo em Londres. Exemplos não faltam. E os que quiserem se aprofundar no tema recomendo o curso História dos Resíduos.

Mas lei sobre lixo, assim como meio ambiente, vieram sendo editadas, como disse, sem estes rótulos. Para lembrar Portugal e legislação ambiental, são nas Ordenações Manuelinas que temos vedação de cortar arvores frutíferas e também caçar animais prenhes ou com crias novas. O Brasil seguiu esta tradição de preservação, embora muitos desconheçam.

Passamos a falar em direito ambiental após Estocolmo em 1972, quando do plano internacional para o nacional, as nações começam a legislar preocupadas com o meio ambiente, já não mais sob o foco humano, mas com foco apenas ambiental. Esta história eu conto bem no meu livro História do Direito Ambiental, que está no prelo.

E assim, com esta legislação agora já ambiental, no último quartel do século XX os resíduos passaram a ser regulados pela poluição que produziam. Não se preocupava no antes do resíduo, mas no resíduo e seu significado.

Está certo que princípios que hoje consideramos como do direito dos resíduos já existiam, já norteavam políticas, mas estavam lá, soltos, apenas atingindo alguns assuntos sobre resíduos. Exemplo é o princípio da planificação, que hoje atinge todos os países ocidentais quando falamos em política pública sobre resíduos: todos devem ter um plano de gestão.

Assim, industrias devem ter o seu, categorias devem ter o seu, municípios devem ter o seu, os estados/províncias devem ter o seu e a União deve ter o seu, o chamado plano nacional. Eles são como copos, sempre o menor dentro do maior. Um exemplo antigo da planificação é a Lisboa dos nossos colonizadores, que na década de setenta do século passado tinha um plano de gestão municipal de resíduos.

Mas agora não dá para trabalhar somente com o conceito de resíduos que foi escrito pela comunidade econômica europeia em 1975: resíduo é aquilo que não tem valor, que o seu possuidor enjeita. Agora os resíduos ganharam doutrina própria, distanciando-se do direito ambiental, para compreender a produção dos resíduos e então solucionar esta relação consumo e resíduos na sociedade.

Pelas mãos de Maria Alexandra Aragão é formatada a teoria de que resíduos são subproduto do fluxo de materiais no metabolismo social. E o que é o direito? O direito é a divisão proporcional de bens e encargos entre pessoas na sociedade (definição primórdia do direito feita por Cícero). Logo, o direito dos resíduos, diferente do direito ambiental, é um direito que busca a divisão proporcional de bens e encargos entre pessoas na sociedade em matérias relacionadas ao fluxo de materiais no processo social de produção e consumo que geram subprodutos caracterizados como resíduos.

Se os resíduos não são mais poluição, mas um subproduto do fluxo de materiais, o direito dos resíduos atua em toda cadeia produtiva com a finalidade de evitar a produção do resíduo residual, aplicando princípios próprios como valorização, autossuficiência, retroajuste, dando novo contorno ao princípio da prevenção usado no direito ambiental, aplicando no momento do projeto do produto e depois agindo no subproduto resíduo. O próprio resíduo para o direito dos resíduos tem uma medição tridimensional. É sob o direito dos resíduos que a economia circular tem uma aplicação consolidada, amadurecida em relação ao seu nascimento na década de setenta do século passado.

Depois de tudo isto, deu para ver que resíduo não é poluição, pode ser matéria prima, pode mover economias e que existe um ramo da ciência jurídica que cuida dele, o chamado direito dos resíduos. A grande contribuição desde novo ramo? É parar de tratar os resíduos como canudinhos. Sem alarmismos. Numa relação de distribuição de bens e encargos entre os homens na sociedade. O direito é para o homem viver bem e em equilíbrio, consigo e em sua casa. O direito dos resíduos promove com suas teorias, princípios e hermenêutica próprias, o justo equilíbrio para tão importante tema: resíduos.

Por fim respondendo a nossa pergunta: lixo não é poluição. Só é quando não atende o direito dos resíduos.

Rogel Martins Barbosa, advogado, doutor em Direito dos Residuos, professor do curso Historia dos Residuos e autor, entre outras obras, do  Politica Nacional de Residuos Sólidos Urbanos, Guia de Orientação para Municípios.

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