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19 de abril de 2024

Eu até que tentei


Por Victor Simião Publicado 10/04/2020 às 20h00 Atualizado 23/02/2023 às 11h49
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Indignado com o volume de pessoas zanzando por aí, decido, por conta e risco, tirar satisfação com elas. Em tempos de crise surgem os heróis, dizem os historiadores. Situações de ruptura exigem a atuação dos melhores da espécie, afirmam os biólogos. Fica no teu canto, moleque, para não apanhar, ser baleado ou, pior ainda!, ganhar um abraço neste momento de coronavírus, diz minha mãe.

Pendendo mais para o lado dos cientistas do que para o de minha genitora, respiro fundo pela primeira vez. É noite de quinta-feira (09), e tudo isso que registro aqui se passa no centro da cidade. Na Avenida Getúlio Vargas, observo de longe pessoas andando em direção ao novo terminal urbano, aonde eu devo ir. Dentro de pouco tempo, meu ônibus, linha 141, partirá. Ao menos uma das pessoas nesse local será abordada por mim. Rapidamente para não perder a condução, falarei sobre a covid-19, o número de mortos na cidade. Mais: direi que ficar em casa evita o contágio, achatando a curva. Empolgado, citarei trechos da entrevista do Átila no Roda Viva, perguntarei se ela votou para eliminar o Prior. Com cara de sério, por fim, questionarei se não há interesse em comprar meu Fusca 1977 – podendo parcelar em 12 vezes.

Respiro fundo pela segunda vez, pensando que logo meu ônibus partirá e não posso perdê-lo, coloco dois cigarros soltos no bolso de minha camisa. Como vou passar pela praça Raposo Tavares, preciso estar preparado para a missão. Arrumo, também, a máscara em meu rosto, e rio levemente ao pensar que meus amigos com bafo provocarão, sem intenção, o próprio suicídio ao usar esse equipamento de proteção individual.

Respiro fundo pela terceira vez e me vou, a Getúlio Vargas vai ficando para trás. Pouco depois, chego à Avenida Brasil, sentido Rodoviária, e atravesso a via de forma rápida, evitando ser atropelado pelos 312 entregadores do iFood que passam ali a 120 km/h. Alcanço o canteiro central. Na ciclovia, cuido para que nenhum maringaense que faz sua caminhada ali encoste em mim. Novamente na pista da Avenida Brasil, sentido Maringá Velho, uma caminhonete, com música sertaneja e bandeira do Brasil adesivada na traseira, passa. De dentro dela, alguém me convida para jantar e tomar vinho ao som de Bob Dylan utilizando outras palavras:

– Sai daí, ô, filho da puta!

Decido responder, mas a boca, mascarada, não atende ao comando. Aí balbucio algo incompreensível, quase um verso do Djavan. Sigo o caminho e alcanço a praça Raposo Tavares. Por milagre, não vejo ninguém em situação de rua. Para celebrar, pego um dos cigarros no bolso da camisa para fumá-lo. De repente e não mais que de repente, surgem 93 pessoas dizendo ter fome e frio e falta de dinheiro para voltar à cidade natal e por favor me dá um cigarro. Sem pensar muito, jogo os dois que tenho para cima e saio correndo – seja o que Deus quiser!

Com passos em alta velocidade, atravesso o estacionamento onde ficava a antiga rodoviária – derrubada sem mais nem menos, levando consigo boa parte da história arquitetônica de Maringá – me sentindo mais rápido que um empresário fechando a empresa quando alguém lhe diz que fiscalização da Prefeitura está por perto. Sim, leitor e leitora, chego, então, ao terminal. E ali, bem em minha frente, vejo pessoas. Muitas delas. Ofegante, sei que tenho um dever. Meu ônibus está prestes a sair em instantes, não posso perdê-lo. Penso, então, em falar com o primeiro ser humano que encontrar. E ele está logo ali, parado, como se esperasse as verdades relativas à doença a serem apresentadas por mim.

De costas, um homem de calça e camisa azul está ao lado da porta de um ônibus. Cutuco-lhe o ombro direito, pronto para tocar no assunto. Serei duro, direto, não posso dar mole para o azar – o meu ônibus logo partirá, não posso perdê-lo.

– Senhor, – eu digo, tirando a máscara – boa noite. Quatro pessoas já morreram
em decorrência do coronavírus, mais de 40 casos testaram positivo em Maringá. Toda a rede de saúde está preocupada com a doença. Posso saber – eu engrosso a voz, encho o peito de ar – por que o senhor está aqui a essa hora?

– Claro: porque sou motorista.

Dou-lhe um sorriso amarelo, meio sem jeito, e peço licença. O ponto em que preciso estar fica ao lado, o ônibus já está saindo, não posso perdê-lo. Enquanto subo na 141, respiro fundo, pela quarta e última vez.

Cronista do GMC Online, Victor Simião é repórter e colunista de literatura na CBN Maringá. Ele está no Twitter e Instagram

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