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20 de abril de 2024

O LIXO E O EFEITO DUNNING KRUGER


Por Rogel Martins Barbosa Publicado 12/03/2020 às 10h00 Atualizado 23/02/2023 às 18h58
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Estamos em pleno século XXI e por que até o presente momento o lixo ainda é um problema? O que se fez com o conhecimento acumulado ao longo dos séculos? De nada serviu?

A experiência hebraica e seu aterro sanitário, a experiência grega com o cordão mal sanitário, a romana com a reciclagem de urina, o problema romano com a cloaca máxima, a cobrança pela coleta em Lübeck na idade média, a coleta seletiva de Paris antes da Revolução Francesa 1789, a experiência com os escavangers na Inglaterra vitoriana, o movimento higienista do século XIX, o conhecido conselho de Chicago de 1855 para estudar o problema do lixo que acabou por, au pied de la lettre, elevar a cidade, ou aqui em terras tupiniquins, as estações zimotérmicas para tratamento de resíduos de 1926 em São Paulo, transformando resíduos orgânicos em fertilizantes ou mesmo os diversos incineradores que houveram no Brasil como o de Porto Alegre da rua de Sans Soucy, última década do século XIX, ou os de São Paulo, o de 1914, no bairro do Araçá, com tecnologia inglesa e capacidade de 40t por dia e funcionou até 1948, o incinerador da Ponte Pequena, inaugurado em 1959, com tecnologia alemã, com capacidade de 300 toneladas dia, desativado em 1997, e o incinerador Vergueiro, com tecnologia alemã, com a mesma capacidade da Ponte Pequena, inaugurado em 1967 e desativado em 2002.

Também a experiência das chamas de Centralia (EUA) em 1962, a experiência alemã unificada com a exigência do TOC insignificante que levou necessariamente a incineração do RSU, ou a experiência da última década do século passado com o ponto verde na Alemanha, ou mesmo a coleta de resíduos a vácuo na Espanha deste século, a tragédia grega desde século em Gramacho (RJ) fechado pelo poder público, mas mantido seu operacional pelo crime organizado, a experiência recente de Israel e Japão em transformar plástico em petróleo, o uso da água supercrítica para tratamento de resíduos, já experimentado nos EUA, mas que em Israel foram além, tratando os resíduos no interior da caçamba do caminhão coletor.

Estas são algumas experiências positivas e negativas, que nos ajudam a construir nosso conhecimento, fora discussões mirabolantes, que para citarmos apenas uma, foi a proposição do congresso do Institute of Solid Wastes em 1965 de enviarmos para o espaço o resíduo sólido urbano das grandes metrópoles.

Com tanto conhecimento e experiências acumulados, porque não conseguimos ainda resolver o problema do lixo?

Já toquei neste assunto no Estado Inimigo do Estado, também em A invasão bárbara e o lixo, para lembrar de apenas alguns textos, mas não pelo caminho que espero explorar agora.

Há outra hipótese que pode ser explorada, o chamado efeito Dunning Kruger.

Este efeito está descrito no artigo “Unskilled and Unaware of It: How Difficulties in Recognizing One’s Own Incompetence Lead to Inflated Self-Assessments”, que em tradução livre é “Não qualificado e inconsciente disso: como as dificuldades em reconhecer a própria incompetência leva a auto avaliações infladas” cujos autores são Justin Kruger e David Dunning, publicado no Journal of Personality and Social Psychology, ano de 1999, Vol. 77, No. 6, pp. 121-1134.

Segundo o estudo, as pessoas tendem a ter visões excessivamente favoráveis de suas habilidades em muitos domínios sociais e intelectuais. Os autores sugeriram que essa superestimação ocorre, em parte, porque pessoas não qualificadas nesses domínios sofrem uma carga dupla: essas pessoas não apenas chegam a conclusões errôneas e fazem escolhas infelizes, mas sua incompetência lhes rouba a capacidade metacognitiva de compreender que não sabe. Paradoxalmente, melhorar as habilidades e, assim, aumentar a competência metacognitiva, ajuda a reconhecer as limitações de suas habilidades.

Na prática, quanto mais incompetente, mais difícil de se reconhecer incompetente.

Quando falamos em resíduos, necessariamente o estado, o ente público, interfere diretamente seja legislando nas esferas federal, estadual e municipal, seja fiscalizando, também nas três esferas, seja executando, especialmente na esfera municipal quando se trata de resíduo sólido urbano.

O estado é aparelhado por agentes públicos, que podem ter seu vínculo passageiro, sem estabilidade, podendo ser admitido e demitido a qualquer tempo, sem justificativa, cujo servidor é ocupante de um cargo de confiança, de regra, um cargo de direção, e servidores com vínculo efetivo, ou estáveis, que aprovados por concurso público, após três anos adquirem estabilidade e só podem ser demitidos através de processo administrativo disciplinar por ter cometido alguma infração grave. E apenas para pontuar também existem servidores contratados apenas por um tempo, para trabalhar especificamente num programa. Passam por teste seletivo, com regime CLT. Têm estabilidade enquanto durar o programa. Extinto o programa, encerra seu vínculo de trabalho com o estado.

Há também o agente político, aquele que foi eleito para implementar determinada política na União (presidente), estados (governadores) e municípios (prefeitos), quando executivo ou para elaborar políticas, na esfera federal os senadores e deputados federais, na esfera estadual os deputados estaduais, e municipal os vereadores.

Traduzindo: na prática temos políticos e suas extensões (cargos em confiança) que podem ser técnicas ou não, e concursados (que de regra deveriam ser apenas técnicos).

Agora vamos analisar. O político é o servidor que eleito, tem uma proposta completa para a administração pública. Ele não é especialista em nada, mas um expert em compreender os anseios populares e aplica-los à administração pública. O político tem o dever de resolver as demandas para as quais se comprometeu, porque senão, não seria eleito. O político quando assume a administração ele apenas capitaneia a nau. Declara o Norte. Mas é sabido e notório, que ele não domina tecnicamente os assuntos. O grande segredo está em saber escolher a tripulação que o acompanhará na nau, nau que já estará ocupada por marinheiros que já navegaram em outras viagens com outros capitães.

O efeito Dunning Kruger nele é menos sentido, porque o seu mundo é flexível e com discursos variados e não gosta de assumir posturas duras. Quando as assume, assume em defesa de “técnicos”. A ignorância protege o político, que sempre pode e deve consultar. É claro que ele responde pelos acertos e erros de seus subordinados, e tem seu capital político ampliado ou decapitado.

Mas o efeito pode ser identificado nos técnicos. Técnicos que ocupam cargos de confiança ou técnicos que ocupam seu cargo conforme a carreira para a qual prestou o concurso público.

Um fato: não existe formação específica sobre resíduos. Ninguém se forma em engenharia de resíduos ou em direito dos resíduos, por exemplo. O que se tem é formação em engenharia civil com ênfase em engenharia sanitária e formação em direito com especialização em direito ambiental e agora, recente, o direito dos resíduos. Mas nenhuma delas com alcance global sobre o tema.

A realidade dos resíduos foi construída com experiências práticas, evoluções tecnológicas e doutrina jurídica e legislação. Para enfrentar esta realidade dos resíduos necessariamente o servidor deve ter um conhecimento holístico sobre o tema. Mas a realidade da administração, em que se o servidor for além das especificações do seu cargo, dos seus encargos, descumpre a lei e por consequência comete ato ímprobo, não favorece o trato do tema.

Temos vistos que um percentual dos que operam são especialistas no que são formados e apenas conhecem o nome, mas não o conteúdo, não os demais sistemas que influenciam na tomada de decisão sobre o caminho dos resíduos.

O exemplo que vou dar é sobre o direito e qualquer área não jurídica, que pode ser interpretado em qualquer sentido, do não jurista ao jurista ou vice-versa.

Nós sabemos que no Brasil, tudo é em função da lei, muito da influência positivista, que no serviço público é uma religião que se pratica, mas que se desconhece. Só se faz o que a lei determina.

Já escrevi em outros momentos e reitero aqui: lei não significa direito e tão pouco o melhor caminho a ser tomado. A lei é fruto da atividade humana, e não de quaisquer homens, mas de homens eleitos por seus semelhantes para em tese representa-los, reproduzindo seus anseios no momento de legislar.

Para nossa realidade, vemos que o conservadorismo do eleitor não acompanha os eleitos e nem tão pouco sua conduta moral, vide os diversos escândalos que assolam o país. Nunca é demais lembrar o ensino de Cristo: pelo fruto conhecereis a árvore. O que temos visto é um bosque de árvores muito ruins, porque seus frutos legislativos sempre vêm defeituosos.

Uma lei deve ser lida sobre preceitos hermenêuticos, observado seu ramo, dentro de sua árvore jurídica, se pública ou privada, sob o manto da constituição da república.

Interpretar uma lei não é ler um artigo apenas ou uma única lei. É mais ou menos como querer ser cristão lendo apenas um versículo bíblico.

Todo acadêmico de direito sabe que é necessário o estudo da hermenêutica para uma exegese adequada. Um bom acadêmico sabe que só o fato de sermos república, já nos dá o primeiro norte de interpretação. Posteriormente sob o dogma do ordenamento jurídico perfeito, ele vai interpretar a norma segundo o ramo em que está, sob os princípios que regem aquele ramo, se direito administrativo, ambiental, dos resíduos etc. Há ramos como o direito ambiental e o direito dos resíduos que tem como complemento básico o direito administrativo. Segundo, interpretar conforme a árvore que está este ramo. A exegese de questões de direito público se submetem a princípios e regras diferentes do direito privado. Por fim, não pode haver colidências, porque existe uma hierarquia e especificidade. Quando ocorrer colidências aparentes, há regras para desfazê-las.

Tudo isto para dizer quão complexo é o mundo da interpretação de uma norma. Mas o que ocorre corriqueiramente? Um servidor cuja formação não é jurídica interpretar normas e aplica-las ao seu entendimento. Assim, simples.

Com isto vemos deturpações sendo construídas cotidianamente. Importante: deturpações que nunca chegarão ao judiciário para serem corrigidas e raras as vezes serão corrigidas na própria administração, porque quando se recorre, se recorre aos mesmos que desconhecem o que pregam, mas que por convictos que estão e para manter sua autoridade intocável, sustentam sua posição.

Já vivi para ver biólogo, mas poderia ser qualquer outra informação, sustentar interpretação contra lege ao ponto de caracterizar abuso de autoridade e o mesmo desafiar que o processassem!

Tudo porque não tem formação e nem interesse em aprender, ainda mais nesta era da informação.

Somado temos um problema educacional de raiz, que não começa no Brasil e nem neste momento histórico. Começa no iluminismo do século XVII e XVIII. Este iluminismo fortemente influenciado pelo cientificismo e naturalismo da época, em que se acreditava que a ciência responderia a tudo.

Assim, o efeito Dunning Kruger é muito maior e constante do que parece. Não é caso de ignorantes isolados ou preguiçosos científicos. E também extrapola o serviço público. É assustador o problema.

Recente li artigo falando que na França de Macron, precisamente em Paris, estão sofrendo um grande problema com o excesso de ratazanas na cidade luz. Segundo o New in Town, “seis milhões de ratos em Paris. Dois e meio por cada residente. São estes os números assustadores da verdadeira praga que se vive atualmente na cidade. O problema não é de agora: e não precisamos de ir para o período da peste negra”.

Isto não é privilégio de Paris, não faz tempo e Nova Iorque gastou alguns milhares de dólares para desratizar a cidade. Segundo o Diário de Notícias de Portugal “Há uma praga de ratos que está a deixar os nova-iorquinos à beira de um ataque de nervos. Os ratos e ratazanas andam por todo o lado: nas ruas, nos bueiros, nos caixotes de lixo de restaurantes da moda em avenidas luxuosas de Manhattan – ou mesmo em carruagens do metro. Um nojo. E apesar de as autoridades desta cidade dos Estados Unidos já terem declarado guerra aos roedores, esta é uma batalha que os homens estão a perder. ”

Mas em Paris, parece que não se quer ganhar a guerra, mas sim entregar a guerra aos ratos! Segundo o Observador “cerca de 25 mil pessoas assinaram uma petição em setembro de 2017 para travar aquilo que dizem ser o “genocídio” de ratos. A responsável pela petição, Josette Benchetrit, psicóloga, considera que a “fobia a ratos é uma fobia social despropositada, tal como a fobia a aranhas”. Continua a matéria: Benchetrit afirma que se se der ao rato uma “cauda farfalhuda” este “é um esquilo”, um animal de que se gosta. A psicóloga diz mesmo que os ratos são “bodes expiatórios” criados pela sociedade para serem “erradicados”.”

É óbvio que esta psicóloga e os seus 25 mil seguidores estão profundamente sob os efeitos de Dunning Kruger. Primeiro: genocídio é um termo que só se aplica a seres humanos: grego génos, entendido como classe ou raça, com raiz no indo-europeu *gene-, por dar à luz ou parir, e o sufixo -cidio, visível no latim como -cidium, associado ao verbo caedĕre, que se refere à ação de matar ou cortar, com referência no indo-europeu *kae-id-, no que diz respeito a cortar. Esta denominação descreve o extermínio em massa de indivíduos que se identificam por uma determinada etnia (1) . Segundo: acusar de fobia social a desratização é realmente ser ignorante quanto as noções elementares de saúde pública e desconhecer a história de seu próprio continente mais de uma vez atacado por pestes.

Mas retornando ao serviço público, porque Dunning Kruger é mais preocupante? Porque além de influenciar as pessoas, decisões sob o manto do desconhecimento, mas com a consciência de acerto pode trazer prejuízos a toda a sociedade. De regra estas decisões vêm acompanhadas de poder coercitivo, seja como decisões em processos individuais ou decisões externadas em obrigações determinadas por portarias, resoluções e outras formas de infra legislação.

Como combater este efeito? Fico tentado a propor o que recentemente ouvi de Rodrigo Gurgel, crítico literário, que preocupado com o assunto de saber se realmente se domina um assunto, recomendou o método Feynman. Este método criado por Richard Philips Feynman, físico americano, Nobel de física em 1965, consiste basicamente em você explicar o assunto para uma criança, que segundo Gurgel, deve ter para nossa realidade entre 12 e 14 anos. Se conseguir explicar tudo numa linguagem acessível para criança e sem dúvidas para si, então você pode ter certeza que sabe o assunto. Mas no nosso caso não é possível usar este método, até porque a ignorância pode vir de uma certeza em uma verdade compartimentada.

No lixo, a única hipótese de se evitar o efeito Dunning Kruger é a absoluta transparência na discussão sobre o tema resíduos e discutir abertamente com o patrão do servidor público: o povo.

O servidor não pode decidir só e nem um conjunto de servidores e nem o servidor mor, que é o agente político.

Cabe ao servidor expor seu conhecimento naquilo que está habilitado. Mas é necessário apresentar ao povo a experiência histórica, a experiência tecnológica e também a realidade jurídica.

O povo pode errar ao decidir, mas nisto não há problema, porque o povo arcará com sua decisão. O que não pode é o servidor decidir e a conta, em todas as expressões possíveis, serem pagas pelo povo.

(1) in https://etimologia.com.br/genocidio/

 

Rogel Martins Barbosa, advogado, doutor em Direito dos Resíduos, professor do curso História dos Resíduos, e autor, entre outras obras, do Politicia Nacional de Resíduos Sólidos Urbanos – Guia de Orientação para Municípios.

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