Nós precisamos de ovos


Por Victor Simião

Foi meio sem querer, juro, mas ouvi a conversa do casal que estava ao meu lado, respeitando o distanciamento de pelo menos dois metros. Embora meu foco estivesse no café expresso que eu pedira, enquanto pensava em simplicidades como explorar marte, criar a vacina para acabar com a pandemia e entender por que professores demoram a responder e-mails, não tive como tapar os ouvidos. Eles me pareceram interessantes, e eu gosto de gente interessante. Eles me pareceram felizes, e eu gosto de gente feliz. Eles me pareceram odiar Tiago Iorc, e, bom, você já sabe o que eu penso sobre, né?

Deu pra ver na cara dos dois que era um primeiro encontro. Por parte dele, piadas toscas e referências a Bob Dylan sempre que possível. Por parte dela, comentários sagazes sobre o Governo Federal, a felicidade ao ler Octavia Buter, e reclamações sobre aulas remotas. Em comum, ambos riam um do outro, e talvez, por aqueles sorrisos, o meu dia ficou mais ameno.  

O casal que não era de fato um casal não se conheceu em nenhum aplicativo de paquera. “Achei muito ousado da sua parte me mandar mensagem daquele jeito, pelo Facebook. Primeiro: quem usa o Facebook? Segundo: eu poderia ser casada, meo.  Terceiro: quem bom que você fez isso”, ela disse. O garoto ficou vermelho, e eu não consegui ouvir o que ele respondeu. Naquele exato momento, uma caminhonete tocando sertanejo em um volume mais alto que o da TV da casa da sua avó me atrapalhou. Pedi mais um café, apostando que o motorista deveria ser um estudante de engenharia, ávido frequentador de micareta e próspero disseminador de sífilis.

Era um primeiro encontro, sim, eu concluí, porque todo primeiro encontro é feito de descobertas, caminhos, passagens para se chegar ao outro. Acho que por isso ambos falaram sobre gostos musicais e de cinema. Ela tem visto filmes nacionais, feitos por mulheres, ouvindo uma cantora que participa de um grupo com os filhos de um artista famoso. Ele, produções estrangeiras de gosto duvidoso e as mesma bandas de sempre. “Eu não sou a pessoa mais culta. A coisa mais próxima da pós-graduação em minha vida é a minha vizinha, que faz mestrado”, ele disse. Ela riu. Eu também. E ele me pareceu se preparar para fazer um comentário, mas, novamente, a caminhonete com o som alto passou. Eu desejei algo ao motorista que, sinto por isso, não posso falar aqui, mas que, na hora, me fez pensar que, se acontecesse, eu sorriria por dentro. Olhando o horário, decidi pedir o último café. Ao recebê-lo, agradeci e paguei a conta ali mesmo, na mesa. Antes de ir para o trabalho, eu queria ouvir mais aqueles dois -já que não havia mais Gaetano e nem nossas conversas sobre os escritores que enfeitam as paredes do Café Literário.

Foi quando o tema da conversa seguiu para relacionamentos. Ele veio de uma experiência ruim, após ter descoberto algo bem negativo sobre a ex. “Não vale a pena dizer o que é, nem quem é. Ela não vale a pena. Nunca valeu”, ele disse. “O meu ex também foi péssimo. Acabou com a minha autoestima, me fez sofrer, chorar. Eu perdi 14 quilos após o término”, ela disse. Olhando um para o outro, firmes, eles se entenderam. Quando ele começou a falar sobre não acreditar mais em relacionamentos, eu já imaginei que não iria ouvir nada porque o diabo da caminhonete passaria, atrapalhando. Mas, não, não foi isso que aconteceu. Ao fundo, o barulho de uma colisão.

O que ele disse, daí, foi que toda relação amorosa é fadada ao fracasso: uma hora você está feliz, amando; outra hora, triste, querendo separar. Mesmo vivendo com a pessoa, acreditando nela, chega um momento inevitável: o do término. Ela concordou e disse cada vez mais acreditar nisso, sentindo também que as pessoas, de modo geral, estão também tendo mais consciência sobre. Qual foi a surpresa quando ela se virou e me perguntou o que eu achava. “Eu sei que você está ouvindo a nossa conversa. Então, qual a sua opinião?”

No susto, me levantei para ter mais firmeza. Aí, disse que não responderia diretamente, mas que, para parecer tão inteligente quanto os dois, citaria o trecho de um filme de que gosto muito. “O protagonista diz, bem no final do longa, que relacionamentos são como aquela velha piada sobre o homem que vai ao psiquiatra e fala: ‘doutor, o meu irmão acha que é uma galinha’. E aí o doutor responde: ‘ora, e por que você não diz ao seu irmão que ele não é uma galinha?’. O cara, daí, diz: ‘porque nós precisamos de ovos’.”

Colocando a máscara no rosto, ainda sorrindo, virei as costas e fui embora. Não sei exatamente se compreenderam o que eu quis dizer, porque, ao olhar para trás, vi que eles se beijavam e, sorridentes, davam a entender que voltariam a se encontrar. Ainda machucados por experiências tristes, sabendo o que é ter o outro, eles preferiram seguir mesmo assim. E tudo bem. Porque é isso, como diria aquele filme, no trecho que eu não contei a eles: relacionamentos são exaustivos, tristes, frustrantes, mas a gente os mantém porque nós precisamos de ovos.

Atravessando a rua do café, vi a caminhonete batida contra um muro da universidade e sorri satisfeito por dentro.

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Victor Simião, 26 anos. É formado em jornalismo e ciências sociais. O cronista está no Twitter e no Instagram. Ele também assina a coluna “Biblioteca CBN“, na rádio CBN Maringá. Leia outras crônicas do escritor.

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