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23 de abril de 2024

AS AMANTES DA RAINHA


Por Elton Telles Publicado 04/04/2019 às 12h00 Atualizado 20/02/2023 às 23h24
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O cineasta grego Yorgos Lanthimos é mundialmente conhecido por projetar um cinema de absurdos. Enveredando-se por diferentes gêneros, suas narrativas sempre abraçam o que de mais grotesco e irreverente pode emergir de uma situação convencional. Em sua curta filmografia, testemunhamos com bastante assombro uma família com métodos educativos bizarros (Dente Canino), outra que tenta sobreviver às ameaças de um psicopata mirim (O Sacrifício do Cervo Sagrado), uma “empresa” cujo serviço é oferecer pessoas para substituir um ente querido já morto (Alps) e uma proposta surrealista que envolve relacionamentos amorosos e animais que vivem na floresta (O Lagosta, seu filme mais aclamado até então).

Aliado a estes enredos nocivos que despertam a curiosidade, há um cineasta afiadíssimo por trás da câmera com evidentes pretensões artísticas, fiel e coerente ao que é proposto e seguro quando decide fugir do habitual e opta por chocar, quando não pelo imprevisto, pela ousadia da linguagem, com ângulos e enquadramentos que provocam estranhamento. Trata-se de um cinema subversivo e que divide opiniões. Ame ou odeie. E talvez por isso, Lanthimos se destaca como um dos diretores contemporâneos mais desafiadores e emblemáticos.

Em “A Favorita”, Lanthimos se distancia dos dias atuais e desloca a excentricidade e perturbação marcantes de seus projetos para a Inglaterra do início do século XVIII, quando o trono era ocupado pela rainha Anne (Olivia Colman). Ela é encarada pelo roteiro como uma monarca completamente sem vocação para assumir o posto, despreparada, sem estratégia política e que toma decisões regida integralmente por fatores emocionais. No palácio, ela é auxiliada por uma fiel companheira, Lady Sarah (Rachel Weisz), porém as relações começam a ficar mais delicadas com a chegada de uma nova “pupila”, a jovem Abigail (Emma Stone). Aí trava-se um confronto pela favoritismo da rainha, que se sente lisonjeada de estar no fogo cruzado, sendo disputada por duas mulheres por quem alimenta uma secreta e tórrida paixão.

Engana-se quem pensa que, entre os imensos cômodos do palácio, com toda a pompa e sofisticação que preenchem os espaços, “A Favorita” é um típico drama de época com embates monárquicos. Afinal, lembre-se que estamos falando de um filme assinado por Yorgos Lanthimos, então não descarte a presença de elementos “deslocados” para essa realidade, como exemplo: coelhos cuidados como bebês, corrida de gansos, street dance, referência à Madonna e doses generosas de homoerotismo. Qual filme ambientado há 300 anos, na realeza britânica, exibe cenas com mulheres se pegando?

Além de toda a excentricidade, é muito admirável a astúcia do diretor em construir uma narrativa macro por natureza trágica, chafurdar no duelo interno de sentimentos das personagens, pintando-as como mulheres complexas e tridimensionais, e ainda extrair momentos cômicos por meio de um visual nada conservador, ora com imagens distorcidas – para denotar a grandiosidade do espaço – ora com uma câmera que praticamente simula um visor olho de peixe. Há muitas facetas para serem administradas em “A Favorita”, e Lanthimos dá conta de todas elas de forma magistral e singular.

O brilhantismo e originalidade do roteiro também merecem reconhecimento. Valendo-se de figuras reais da História e incorporadas com toques ficcionais, o script de Deborah Davis e Tony McNamara é fluído e muito hábil em engendrar as várias subtramas que decorrem em paralelo à principal, centralizada na relação de poder e manipulação entre a rainha e suas servas de preferência. A guerra, os protocolos da corte real, o casamento por interesse, os fantasmas da rainha, dentre outros pontos, são todos entrelaçados de maneira engenhosa. Isso sem falar na acidez dos diálogos, inconsequentemente cruéis e hilários, tais quais “se eu fosse um homem, eu a violentaria” ou em um momento de provocação, o derradeiro “eu gosto quando a língua dela está dentro de mim”.

Ademais, talvez o grande desafio do roteiro – e que a dupla de escritores tira de letra – é garantir densidade emocional para as protagonistas. “A Favorita” não narra unicamente um jogo de gato e rato, uma mera disputa palaciana; há muito mais inteligência e profundidade no tratamento das personagens femininas, cuja relação intercala um turbilhão de sentimentos, de amor, admiração, desejo até piedade, aversão e vingança.

Todos esses esforços não passariam de uma tentativa frustrada se o elenco não fosse competente para demonstrar tais oscilações afetivas. Felizmente, as três atrizes entregam trabalhos impecáveis. Colman defende uma personagem dificílima de o espectador se afeiçoar: uma rainha moribunda, mimada, escandalosa e de difícil temperamento, que para além do histerismo, ainda sofre de invalidez física – e a composição corporal de Colman, sobretudo na cena em que corre desesperada pelos corredores do palácio, é excelente. Não à toa, Olivia Colman foi coroada com o Oscar, Globo de Ouro, no Festival de Veneza e mais uma tonelada de prêmios pela seu desempenho.

A ótima Emma Stone é gratificada com a personagem mais “atrativa” do trio, a inicialmente doce e ambiciosa Abigail, que se envolve nos momentos mais exigentes em termos de comédia – e considerando o timing cômico da atriz, não é de espantar a sua destreza e naturalidade. Do outro lado do ringue, a minha favorita, Rachel Weisz, que, pra mim, tem a personagem mais difícil por conta da frieza/sobriedade que a interesseira Lady Sarah se comporta. Nota que a Weisz nunca levanta a voz, mantem-se num mesmo tom durante toda a trama, mas sempre sedutora e se fazendo presente em cena. Espetacular como poucas.

Dividido em capítulos, talvez “A Favorita” seja o exemplar mais acessível de Lanthimos, considerando a esquisitice de seus trabalhos anteriores. Ainda assim, o filme perpetua a marca de um cineasta que tem o que dizer e o diz sempre de forma criativa e interessante.

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