– Alô, Márcio, tudo bom?
– Opa, Rodrigo, tudo. E aí?
– Ah, cara: esse isolamento… Não sei, tô me sentindo estranho, e é por isso que eu tô te ligando agora. Eu sei que é madrugada, acho que você tava dormindo, mas é que, meu, tá difícil segurar.
– Diarreia?
– Alucinações, mais especificamente.
– Bom, ao menos não tem sujado cuecas mais do que o necessário.
– Deixa eu falar.
– Han.
– Tenho tido sonhos estranhos.
– Com animais?
– Não
– Porque se for com animais…
– Não, Márcio.
– … Tem o jogo do bicho lá na Raposo Tavares.
– Não, porra, tô falando sério!
– É na banca do Lapinha, negócio de família. Coisa séria também, Rodrigo, até delegado joga, porra. Dá para conseguir uma grana nessa quarentena, pô. Talvez o único motivo que pode nos fazer sorrir.
– Eu não sei por que te ligo.
– Sua esposa te largou, seus filhos te odeiam – e mesmo sua mãe, dona Dulce, não tem mais saco para você. Isso responde?
– Desculpe, você é meu único amigo. Posso te contar o que tenho sonhado?
– O resultado nos levará à banca do Lapinha?
– Não, Márcio, mas preciso que alguém me ouça e me diga se preciso de um médico ou não.
– Anota aí, tenho o telefone de uma ótima psicóloga ótima pra indicar. Ela analisa o Victor há anos e ainda não se matou.
– Cacete, Márcio, me ajuda aí.
– Tá, fala logo.
– Há dias que não saio de casa, Márcio, e, como meu dinheiro vai para o aluguel, pensão e cigarros, estou sem internet e TV. Meu contato com o mundo exterior se dá pelo sol que tomo.
– E, pelo que o sol indica, tá tudo claro, né?
– Você não consegue passar um minuto sem fazer piada, cara?
– Desculpe, diga lá.
– Eu sonhei que um deputado arrumou confusão com a China pelo Twitter.
– Isso é realidade, Rodrigo.
– Alucinei, também, que o presidente fez um discurso na TV rebatendo a ciência, o bom senso e a própria equipe dele.
– Isso também aconteceu.
– Tem mais. Tiago Iorc: sumiu novamente. Terraplanistas: descobriram a ciência. Cristãos que seguem pastores famosos: deixaram os guias de lado e agora conheceram Deus.
– Bom, nesse último caso foi sonho mesmo, Rodrigo.
– A vida tá nesse ponto mesmo, então, Márcio?
– Uhum.
– Covid-19, isolamento social, terraplanistas, Tiago Iorc…
– Uhum.
– Que merda…
– Pois é.
– Então, é… Me fala mais da banca do Lapinha?
Victor Simião é jornalista. A crônica é um texto ficcional, não opinativo. Fale com o autor: victorsimiao1@gmail.com.