CINEBIO COLORIDA, PORÉM CINZA


Por Elton Telles

Não é regra, mas existe um molde de roteiro para cinebiografias que dificilmente os realizadores conseguem “escapar”. Até porque a fuga do padrão implica em algumas questões, como a aprovação do roteiro pelos estúdios e a aceitação dos espectadores, que estão habituados com um tipo de enredo quando a proposta é narrar a história de vida de uma celebridade.

Fazendo um resumo corriqueiro, essas cinebiografias geralmente começam na infância, onde são apresentados problemas que culminam após os 20, como também indica a aptidão da criança para as artes. Já a juventude centraliza na busca pelo sonho, enquanto a fase adulta é uma turbulência para administrar a fama e o sucesso alcançado com alguma ruptura/trauma ocorrido na fase infantil. Quase sempre há um amigo fiel ou interesse amoroso para dar respaldo ao biografado, e o desfecho, mesmo quando trágico na vida real, freia e entrega uma cena catártica para o público sair do cinema com sorriso estampado no rosto. A parte “triste” fica por conta das cartelas no final com dizeres e informações.

Isso quer dizer que essas cinebiografias são ruins? É claro que não! Além do roteiro, há muitos outros atributos a serem analisados em um filme. Todavia, o script ser escravo de uma estrutura pré-estabelecida pode coibir a produção de dar um salto maior, evitar o previsível, sair da zona de conforto. Alguns filmes corajosos já se propuseram a isso, como o excelente “Não Estou Lá” (2007), sobre as diferentes facetas de Bob Dylan. Entretanto, a maioria prefere se manter seguro com uma dramaturgia linear, objetiva, sem distrações ou contemplações, com cenas rápidas para dar logo o seu recado. Não precisa ir longe para citar alguns exemplares: “Ray” (2004), “Piaf – Um Hino ao Amor” (2007), “Tim Maia” (2013), “James Brown” (2014), “Elis” (2015) e “Bohemian Rhapsody” (2018).

Cinebiografia musical do cantor e compositor Elton John, “Rocketman” é mais um título que não foge a essa regra.

O filme tem início em uma reunião dos Alcóolicos Anônimos, onde Elton John começa a se abrir para o grupo, expondo suas dependências ao álcool, drogas, sexo, remédios etc. Sua fala dá espaço a vários flashbacks, passando pelo garoto promissor e com dificuldades em casa até se tornar um dos maiores astros do rock n’ roll. É preciso se ater que toda essa história é contada em um encontro do AA, e o clima naturalmente triste desta situação percorre todo a trama, para o bem e para o mal. Da mesma forma que nos sentimos atraídos pelos dramas e conquistas de Elton, é cabível se indagar “ele já foi feliz em algum momento de sua vida?”. Ainda que seja assumidamente um musical e tenha momentos alegres, “Rocketman” abraça a sofrência e não solta. Para um artista gay, aparentemente feliz e sempre com vestes coloridas, sua cinebiografia é o oposto: monocromática, cinza e melancólica.

Essa opção cria um contraste interessante, porém há momentos que o filme inevitavelmente flerta com o moralismo ao mostrar somente os efeitos avassaladores de uma vida sem limites. Em seu terceiro ato, “Rocketman” adota um tom careta, com postura quase de julgamento a seu protagonista. É sabido que drogas são nocivas à saúde e pode desencadear diversos problemas psicológicos, mas a maneira fragmentada de mostrar a ruína de Elton John e o alívio imediato por meio de entorpecentes não foi tão bem concebido. Em nenhum momento do filme, Elton está chapado e feliz, a não ser quando está trabalhando, apresentando-se para um grande público.

Para embasar a tendência do biografado, “Rocketman” costura uma teia de maus relacionamentos envolvendo o rapaz, a começar pela família disfuncional, com uma mãe homofóbica e um pai ausente, que posteriormente descobriu em outro lar como amar os filhos – a cena em que o cantor assiste do táxi o pai sendo carinhoso com seus meios-irmãos é emocionante. Além do âmbito familiar, há um amor não correspondido por quem se tornaria o seu melhor amigo e um romance fracassado com um empresário interesseiro. Muitos gatilhos, nem todos bem resolvidos.

Por outro lado, é preciso reconhecer o bom trabalho de Dexter Fletcher na direção. Ainda que assuma esses problemas de ocasionalmente apontar o dedo, Fletcher revoga o “vitimismo” de Elton e lhe atribui autoridade para agir, sem retratá-lo como uma folha seca que vai aonde o vento leva. É palpável o carinho do diretor pelo biografado, e isso faz toda a diferença. Quanto às passagens musicais, é de encher os olhos a inteligência de Fletcher em usá-las a serviço da narrativa, com elipses mostrando o avançar dos anos de forma criativa. O momento que performam a música que batiza o filme, particularmente, é um espetáculo e significativa por começar dentro da piscina e a representação da água como limpeza dos maus agouros. Simplesmente genial.

O ator Taron Egerton encara Elton John com convicção e convencimento, assumindo muito bem a densidade dramática do cantor e não se limitando a reproduzir os seus trejeitos. Elogios também recaem ao atencioso design de produção e a ótima recriação dos figurinos assinada pelo estilista Julian Day.

“Rocketman” tem as suas falhas, mas também conta com momentos inspiradores para o gênero. No mais, fica a comovente história de um homem oprimido pela fama, sempre rodeado de pessoas, mas no fundo, era um ser solitário.

Sair da versão mobile