Consórcio público é um bom negócio no lixo?


Por Rogel Martins Barbosa

Consórcio público é um bom negócio no lixo?

Consórcios públicos são muito citados como solução para o tratamento de resíduos. Para saber se realmente são um bom negócio para a solução do problema dos resíduos é necessário conhecer alguns pontos.

O primeiro ponto é o quanto os consórcios são utilizados para a modalidade resíduos.

Quantos consórcios públicos temos no Brasil?

Segundo dados colhidos na plataforma do Observatório Municipalista de Consórcios Públicos da Confederação Nacional dos Municípios, no Brasil nós temos um total de 487 consórcios públicos, sendo que para resíduos são 138. Destes 138, 128 têm natureza de direito público e dez tem natureza de direito privado.

Todos são efetivos?

Mas existe algo mais por trás destes números: há consórcios constituídos no mundo jurídico, mas que não atuam na realidade. Como exemplo, posso citar o Consórcio Público Intermunicipal para o Desenvolvimento Sustentável da Região do Vale do Médio Ivaí do Estado do Paraná – CIMEIV, que envolve os municípios de Floresta, Itambé, Ivatuba, Mandaguari, Marialva, Maringá e Sarandi, no Paraná.

São sete municípios consorciados, com atuação em 13 áreas, dentre elas resíduos sólidos, mas que desconheço qualquer ação deste consórcio nesta área. Pesquisando no portal da transparência do Proamusep descobri que o Consorcio Cimeiv não possui nenhum servidor efetivo, comissionado ou temporário em seu quadro de funcionários.

Acredito que está vigente porque encontrei prestações de contas no TCE/PR, sendo que o último acordão referente ao consórcio foi o 4017/2019. Este consórcio foi constituído em 2013, ou seja, há sete anos. 

Neste mesmo perfil podem existir muitos outros.

Na prática isto pode significar que o número de consórcios efetivos é bem menor que o número de consórcios constituídos, ou que constituídos para mais uma área, efetivamente, só atuam em uma.

Quais os requisitos para formar um consórcio?

Após os dados, precisamos saber quais os requisitos para montar um consórcio e como funcionam.

Os consórcios têm uma lei de regência, que é a 11.107/2005. Atualmente o decreto que a regulamenta é 6.017/2007. Nesta lei se encontram todos os requisitos, forma de funcionamento e possibilidades de contratação de um consórcio público.

Basicamente para constituir um consórcio os prefeitos precisam estar alinhados quanto ao objetivo do consórcio e então partir para uma prévia da constituição, chamado de protocolo de intenção.

Este protocolo deverá ser publicado para efeitos de controle do ato pela sociedade.

O protocolo

Só para se ter uma ideia de quão burocrático é, o protocolo para sua validade deve conter no mínimo, conforme redação do art.4º da lei: a denominação, a finalidade, o prazo de duração e a sede do consórcio; a identificação dos entes da Federação consorciados; a indicação da área de atuação do consórcio; a previsão de que o consórcio público é associação pública ou pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos.

Soma-se ainda, conforme o mesmo artigo: os critérios para, em assuntos de interesse comum, autorizar o consórcio público a representar os entes da Federação consorciados perante outras esferas de governo; as normas de convocação e funcionamento da assembleia geral; a previsão de que a assembleia geral é a instância máxima do consórcio público e o número de votos para as suas deliberações; a forma de eleição e a duração do mandato do representante legal do consórcio público; o número, as formas de provimento e a remuneração dos empregados públicos, bem como os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público.

E tem mais

E tem mais: as condições para que o consórcio público celebre contrato de gestão ou termo de parceria; a autorização para a gestão associada de serviços públicos, explicitando as competências cujo exercício se transferiu ao consórcio público, os serviços públicos objeto da gestão associada e a área em que serão prestados, a autorização para licitar ou outorgar concessão, permissão ou autorização da prestação dos serviços, as condições a que deve obedecer o contrato de programa, no caso de a gestão associada envolver também a prestação de serviços por órgão ou entidade de um dos entes da Federação consorciados, os critérios técnicos para cálculo do valor das tarifas e de outros preços públicos, bem como para seu reajuste ou revisão; e o direito de qualquer dos contratantes, quando adimplente com suas obrigações, de exigir o pleno cumprimento das cláusulas do contrato de consórcio público. (Redação do art. 4º da lei).

Só pelo exposto acima já é possível imaginar a energia e o esforço feito pelos entes que se dispuseram em participar do consórcio, as análises do jurídico de cada ente, a discussão interna, etc.

Depois que cada ente se resolveu internamente, pense nos inúmeros debates entre os entes sobre eventuais disposições que possam discordar entre si.

A lei

Superada a fase protocolar, para o consórcio existir de direito, deve cada ente público editar uma lei ratificando o protocolo. Isto significa nova maratona, agora no legislativo municipal de cada ente. Será uma maratona de discussões e debates para o amadurecimento da ideia do executivo, que nada mais é que uma necessidade dentro do processo democrático no estado de direito.

Existe hipótese de lei prévia, mas a regra é lei posterior como dito acima.

Aprovada a lei, ratificado o protocolo, aí se vai para concretizá-lo no mundo da natureza, em contraposição ao mundo das ideias e das normas no qual até então existia o consórcio. 

O dinheiro

Ponto importante são os recursos que moverão esta nova máquina administrativa. E aí vem mais burocracia: os contratos de rateio. Estes contratos são formalizados em cada exercício financeiro e seu prazo de vigência não será superior ao das dotações que o suportam, com exceção dos contratos que tenham por objeto exclusivamente projetos consistentes em programas e ações contemplados em plano plurianual ou a gestão associada de serviços públicos custeados por tarifas ou outros preços públicos. (Redação do art. 8º da lei).

Na pratica é canalizar recursos públicos, ainda que para o início apenas, para o novo ente.

Os funcionários do consórcio podem ser cedidos pelos entes que compõem o consórcio ou então contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho.

O contrato

O consórcio só pode ser contratado com dispensa de licitação pelos entes consorciados. Em última análise o consórcio é um órgão formado pelos municípios para prestar serviços sem licitação para estes mesmos municípios.

O consórcio público está sujeito à fiscalização contábil, operacional e patrimonial pelo Tribunal de Contas, o que significa todo ano ter que prestar contas ao TCE, podendo as contas ser ou não aprovadas. (Redação do art. 9º da lei).

O presidente

Seu presidente é sempre um político, já que o requisito para presidir é ser o chefe do executivo de um dos entes que compõem o consórcio.

Se os entes que compõem o consórcio quiserem fazer uma concessão para o consórcio, poderia ser por contrato de programa. Mas isto agora está na berlinda, já que se vetado o art. 20 do novo Marco de Saneamento, não poderá ser feito mais contrato de programa para concessão de resíduos.

Resumo

Resumindo a ópera: é burocrático a sua constituição, é necessário orçamento dos entes públicos para manter o consórcio, manterá característica dos entes que o formaram, que é ser dirigido por político, será submetido ao controle do Tribunal de Contas.

Por outro lado, poderá ter a dinâmica de contratar pelo regime da consolidação das leis do trabalho, ou seja, os empregados públicos que trabalharem no consórcio não terão estabilidade. Mas esta facilidade de contratar não quer dizer que é nos moldes da iniciativa privada. Sempre é necessário um certame.

Os resíduos

Olhando pelas lentes dos resíduos o que o consórcio pode fazer? Se transformar numa entidade gestora ou executora do sistema.

Para os municípios contratarem o consórcio como gestor ou executor, deverá existir em cada plano municipal de gestão de resíduos o permissivo expresso.

O consórcio deverá então obedecer aos planos, cumprindo as determinações, estipulações e índices de eficiência ali previstos.

Se o consórcio gerir ou executar em uma região metropolitana, então além dos planos municipais preverem, é necessário que o plano da região metropolitana tenha a mesma previsão para a gestão ou execução consorciada.

O consórcio poderá executar coleta, destinação e disposição final, nos termos da política nacional de resíduos sólidos urbanos.

A depender do formato de contratação poderá cobrar tarifa direto do gerador doméstico.

Onde está a vantagem?

Mas o que isto tem de vantagem em relação a uma empresa privada?

Primeiro, eu não vejo vantagem tirar do estado direto para cair nas mãos do estado indireto. O serviço e o gestor continuam públicos, dentro do mesmo ambiente estatal de ineficiência e necessidade de controle absoluto, sob pena de desvios.

Outro fator que acaba atrapalhando os consórcios é ter unidade de pensamento entre os agentes políticos. Isto não é uma coisa muito fácil. O consórcio se torna de regra, motivo de abandono, se não der visibilidade ou de disputa política, se for um bom negócio. 

O que vemos

Em resíduos, o que eu tenho visto é que ao invés de criar esta nova estrutura estatal, os municípios que são concentradores naturais em sua região têm concedido seu resíduo a iniciativa privada. Como hoje não se vê tratamento, a regra é concessão para aterro com cobrança de royalties dos municípios que enviam seus resíduos para a empresa sediada em seu território e que mantém a concessão.

Pequenas quantidades de resíduos inviabilizam o tratamento e até mesmo a manutenção de aterros. Assim é comum o município pequeno licitar e ter um transbordo para que seu resíduo seja encaminhado para um local de tratamento fora de seus limites.

Tenho visto muitas licitações pela modalidade pregão, ou seja, escolhe-se a tecnologia e discute-se apenas preço. Contratos administrativos simples, feitos por um ano e renováveis até cinco. Isto dá dinâmica para o gestor: não fica amarrado a uma concessão que pode não ser eficiente no futuro e pode a qualquer tempo, respeitado o pequeno prazo do contrato, mudar para outro prestador de serviço que tenha uma tecnologia mais eficiente e economicamente mais vantajosa.  

Modelo perverso

Este modelo é um pouco perverso para o particular, já que tem que montar seu negócio de modo a não depender exclusivamente do poder público e se depender, tem que ter o maior número possível de entes em sua carteira, para reduzir o risco de, quando houver o rompimento de um contrato, a queda de faturamento não o levar para uma quebra.

Não é o melhor modelo, mas é o modelo que está funcionando. Cada vez mais vejo pequenos municípios licitando destinação final por pregão e empresas que estão estabelecidas em municípios maiores ganhando estas licitações para receber estes resíduos. Na verdade, reitero, só tenho visto aterros.

Este modelo é possível para outras tecnologias, como produzir energia através dos resíduos. Neste modelo uma empresa recebe o RSU e o transforma em CDR (combustível derivado de resíduos) através de compostagem acelerada.

Em seguida, a produtora de CDR vende esta matéria prima para empresas já preparadas e autorizadas ambientalmente para produzir energia através de biomassa.

Novamente a pergunta

Existem outras experiências, mas temos que retornar e responder a questão posta: consórcio público é um bom negócio no lixo? Vai depender muito da proposta e realidade a ser enfrentada, mas se analisado em tese como expusemos neste artigo, eu sou forçado a dizer que não.

O consórcio é mais uma estrutura estatal em sua essência, ainda que possa ter uma natureza de direito privado. Respira direito público e é comandado por um agente político.

Consórcio criado em um ambiente com determinados agentes políticos, com a saída destes agentes de seus respectivos cargos, tendem a “esfriar”.

Se a tônica é eficiência

Um modelo com execução privada é mais eficiente.

Se a tônica é eficiência, acho que o modelo que o mercado está formando naturalmente tem trazido mais resultados que os consórcios públicos.

Rogel Martins Barbosa, advogado, doutor em Direito dos Resíduos, autor de livros, dentre os quais Política Nacional de Resíduos Sólidos Urbanos – Guia de Orientação para Municípios, professor do curso História dos Resíduos e do curso livre Direito dos Resíduos, criador do canal Resíduos Meio Ambiente e Estado

Sair da versão mobile