PÍLULAS: O ANJO, DOGMAN, BORDER


Por Elton Telles

Para quem não é familiarizado com o sistema da categoria Melhor Filme Estrangeiro no Oscar, funciona em resumo da seguinte forma: cada país reúne uma comissão de artistas ligados ao audiovisual para escolher 1 produção para representar o país. Posteriormente, o filme candidato passa pelo crivo da Academia. De uma lista de aproximadamente 80 títulos representando 80 países, os votantes do Oscar passam o pente fino e escolhem, de acordo com seus critérios particulares, os 5 finalistas.

Neste ano, os países indicados foram Japão (“Assunto de Família”), Líbano (“Cafarnaum”), Alemanha (“Nunca Deixe de Lembrar”), Polônia (“Guerra Fria”) e o vencedor México (“Roma”, disponível na Netflix).

Nem a Argentina, Itália ou Suécia* tiveram seus representantes presentes na categoria Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2019. Mas aproveito a exibição destes filmes no circuito brasileiro para comentá-los nesta edição do Pílulas. Foram esnobados pela Academia, mas a coluna fez questão de lembrá-los.

* O candidato da Suécia resenhado abaixo, “Border”, falhou em emplacar em Melhor Filme Estrangeiro, porém foi merecidamente lembrado na categoria técnica Melhor Maquiagem e Penteado.

Inspirado no caso do garoto de 19 anos que cometeu diversos roubos e homicídios na capital argentina no início dos anos 1970, “O Anjo” é a abreviação para “O Anjo da Morte”, apelido dado pela imprensa ao criminoso de feições angelicais, aparência inofensiva e cabelos dourados. Carlos Robledo Puch, ou apenas “Carlitos”, foi sentenciado à prisão perpétua, sendo hoje o prisioneiro mais antigo da Argentina, encarcerado há 46 anos. “O Anjo” não é exatamente uma cinebiografia do jovem delinquente; o filme se apresenta mais como um relato dos episódios e uma análise perspicaz da evidente psicopatia do protagonista, que considera seus atos marginais uma “vocação” dada a ele por Deus.

Na pele de Carlitos, o ator estreante Lorenzo Ferro demonstra segurança e naturalidade. Ao mesmo tempo que entrega uma atuação contida, talhada na frieza e apatia que exige o personagem – sintomas de pessoas com tendência psicótica –, é impossível desviar o olhar de seu sorriso irônico. O diretor Luis Ortega é bem ciente disto, tanto que explora com sua câmera a simetria do rosto de Ferro, com planos-detalhes em sua boca rosada e olhos claros. De fato, um “anjo” por fora. Além deste contraste, o filme se deleita nestas cenas e nos closes para suscitar a visível tensão sexual que existe entre Carlitos e seu parceiro de crime, Ramón – a suposta homossexualidade era uma das motivações que a imprensa careta usava na época como justificativa para o “desvio de caráter” do assassino.

Considerando o enredo típico de filmes policiais, o que diferencia “O Anjo” é o tom passivo concedido pela direção, salpicado de toques cômicos e uma trilha sonora divertida. O resultado é satisfatório.

A testa franzida em sinal de preocupação permanece do primeiro minuto até os créditos finais do pungente “Dogman”. No subúrbio de Nápoles, um lugar sujo e devastado pela miséria, o esmilinguido Marcello administra um pet shop. Fora do horário comercial, para incrementar a renda, atua como traficante de cocaína para usuários da comunidade, entre eles, o seu “amigo” Simoncino, um brutamonte estúpido que passa por cima de qualquer coisa/pessoa que lhe é adverso. Incluindo o próprio Marcello. A trama acompanha as constantes agressões e humilhações de um para o outro num retrato duro de poder e subserviência aos mais “fortes”, onde a violência é respondida com ainda mais violência.

O cineasta italiano Matteo Garrone se afasta do tom fantasioso de seus filmes anteriores e retorna à crueldade e aspereza política que o despontou em 2008 com o aflitivo “Gomorra”. Em “Dogman”, a ironia é perceptível e o campo de reflexão para metáforas sócio-políticas, a maioria bem ditas nas entrelinhas, está aberto. E mesmo algumas sendo ligeiramente óbvias, como a bestialidade do ser humano em comparação a animais irracionais, vale pelo registro dramático de uma terra sem lei e pela voz dos oprimidos sendo ouvida, mesmo que de forma trágica. A entrega de Marcello Fonte como o sofrido protagonista lhe rendeu com mérito o prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes, mas também merece destaque o antagonista encarado com convicção por Edoardo Pesce.

Nada é tão bizarro que não possa ficar ainda mais bizarro no excelente “Border”. A maneira envolvente que o roteiro vai tracejando a história é de um domínio narrativo arrasador, porque não entrega a receita completa; o roteiro vai soltando os ingredientes aos poucos, e quando percebemos, estamos famintos pra saber o desfecho da trama, centralizada em uma mulher com habilidade de descobrir os sentimentos das pessoas através do olfato. Tina trabalha como vigilante em um aeroporto e sua função é praticamente a de um cão farejador, semelhança que pode estender à sua aparência física animalesca, desprovida de qualquer resquício de beleza e sensibilidade – resultado de um trabalho soberbo de maquiagem. Em uma revista nos passageiros, ela conhece um homem que tem as mesmas feições que as suas, ali logo se identifica e a partir deste encontro, descobre segredos que foram mantidos sobre quem ela é e de onde veio.

“Border” é um misto de drama, romance, horror e ficção científica. Todas essas investidas são muito coesas no script co-escrito por John Ajvide Lindqvist, mesmo roteirista do maravilhoso “Deixa Ela Entrar” (2008), com o qual esta produção também sueca divide parentesco. Ouso em dizer que o jovem diretor Ali Abbasi colocou a si mesmo em uma grande “cilada”, num desafio enorme de transformar o feio no belo. Felizmente, superou a própria emboscada com louvor. Inicialmente grotesco, o filme vai recebendo nuances surpreendentes, e toda a ojeriza propositalmente despertada pelo refinado trabalho de direção é diluída em um tom fabulesco lindo e emocionante. Elevado pela atuação magnífica da atriz Eva Melander, “Border” é certamente um dos melhores filmes ficcionais lançados neste ano.

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