UM POVO VARRIDO DO MAPA


Por Elton Telles

 

– Quem nasce em Bacurau é o quê?
– É gente.

“Bacurau” começa com o fim de uma vida. Os habitantes do povoado fictício que batiza o longa, localizado no oeste de Pernambuco, se reúnem comovidos para enterrar Carmelita, idosa que contribuiu com a história do lugar, uma cidadela de poucas casas e comércios e que curiosamente ostenta um museu mantido pelos locais. Ambientado em um futuro indefinido e distópico, considerando o cenário precário o qual o público é introduzido, o enredo do filme demonstra notória preocupação em manter viva a memória daquele espaço. Tanto o museu quanto Carmelita são a materialização deste zelo.

Aos poucos, os diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles vão desnuando com apego aos detalhes os segredos e particularidades de Bacurau ao ponto que o espectador vai compreendendo a dinâmica do local: de onde vem a água, a comida, os itens da saúde pública, como é a administração do município e as relações interpessoais entre os membros da comunidade. Por um lado, é triste observar as condições inóspitas da região e o esforço das pessoas em desempenhar o papel do Estado, cada integrante assumindo uma função a fim de garantir o mínimo de dignidade para (sobre)viver. Entretanto, é justamente a consciência coletiva de trabalho e cumplicidade entre os moradores que fazem Bacurau funcionar, inclusive nos momentos que é preciso se unir para combater qualquer ameaça iminente.

Entregue como um conto de bravura e resistência, “Bacurau” é um filme grandioso que passa por cima da gente como um rolo compressor. É muito interessante como o roteiro é aplicado em ressignificar determinadas convenções e discursos, desde a representação do cangaço até as secções narrativas que conflui em um palco para uma “nova” colonização. Isso faz de “Bacurau” um filme com o Brasil inscrito em cada frame, ainda mais abarcando o contexto sócio-político atual. Paradoxalmente, este é e não é um produto de seu tempo, pois levando em conta o nosso passado obscuro e o futuro incerto do país em diversos estratos da esfera pública, é possível ver “Bacurau” sendo pauta por muitos anos à frente.

Como prova da atualidade do filme, há infelizes coincidências recentes com a realidade, a exemplo da cena da criança morta a sangue frio porque o atirador confundiu a lanterna da vítima com uma arma ou então a ingenuidade do governo em estreitar laços com os Estados Unidos e transformar o Brasil em playground para gringo. Ou ainda, a questão da invasão/desapropriação de terras para práticas predatórias. Com pesar, é preciso ser dito que “Bacurau” soa até profético em certo sentido. No pior sentido, aliás, o que só o engrandece enquanto obra cinematográfica.

Além de estabelecer o espaço e seus personagens com exímia dedicação, a dupla de diretores/roteiristas convida o espectador a adentrar Bacurau, aram o terreno e simultaneamente cultivam a história em marcha lenta sem abrir mão da espontaneidade e do aspecto rotineiro. Quando o público se dá conta, já está absolutamente imerso naquele universo de aparência tranquila, mas com sinal de perigo à espreita. E aqui reside um dos maiores méritos da direção em permanecer sempre instigante o tom enigmático que ronda “Bacurau”, por vezes até flertando com o western e a ficção científica. Mendonça Filho e Dornelles, aliás, passeiam por diferentes gêneros para amarrar o roteiro, buscando claras referências na violência bem filmada de Sam Peckinpah ou na arquitetura de suspense arrojada digna de um John Carpenter. Ainda soltando alguns simbolismos peculiares para refletir, é brilhante como essas diferentes faces do filme convergem e o todo atinge uma voltagem eletrizante, sobretudo no terço final.

O clima hostil é muitíssimo bem construído tal qual os personagens. Bem como “O Som ao Redor” (2013), primeiro longa-metragem com assinatura de Kleber Mendonça Filho, somos apresentados a uma escala de indivíduos diferentes entre si, mas com o objetivo em comum de proteger a sua terra. A veterana Sonia Braga surge furiosa como a médica Domingas, uma participação marcante de uma das maiores intérpretes brasileiras, enquanto a novata Bárbara Colen deixa sua marca como Teresa, uma personagem mais equilibrada, dócil e estratégica.

Quanto ao núcleo masculino, de um lado temos o guerreiro Lunga imortalizado na ótima entrega de Silvero Pereira, e do outro, um Udo Kier que fala manso, mas é a própria personificação do fascismo. Isso sem falar das pequenas participações, como o senhor que fala através da música ou a dona da mercearia que recebe desconfiada a visita de turistas brancos. Todas são atuações exemplares que colaboram com o perfil incendiário da trama e enriquecem a experiência.

Reconhecido com o Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2019, “Bacurau” é uma apoteose. Não é violência gratuita, nem se trata de vingança ou revanchismo. O filme é um convite à resistência e o retrato de um povo apagado e que luta para se fazer visível. Quem nasce em Bacurau é gente, é o verdadeiro “gente de bem”.

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