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28 de abril de 2024

A carta


Por Victor Simião Publicado 01/08/2019 às 16h15 Atualizado 23/02/2023 às 17h36
 Tempo de leitura estimado: 00:00

Naquela noite a mãe se abre como nunca fez até então.

– Preciso revelar um segredo, filho.
– Pois fale, mãe – João diz, mastigando a torta de legumes.
– Teu pai…
– Han?
– …Quase foi outro.

Engasga o filho.

“Tenho às vezes vontade de ser/Novamente um menino/E na hora do meu desespero/Gritar por você.”

– Como assim, mãe?!
– Foi há muito tempo.
– Que me conte.
– Preparado?

João beberica o café. Ao lado dele, o notebook. Roberto Carlos entoa “Lady Laura” em uma playlist do Youtube.

– Sim.

O pai, ausente da mesa porque assiste a vídeos de UFC no quarto, facilita a delação premiada.

– Só namorei um homem na vida, o seu pai. Mas, quando jovem, beijei muitas bocas. Adolescente, fui moçoila de bailinho: o vestido de bolinha era o meu, o vermelho também, o último cabelo da moda eu tinha. Mesmo sem dinheiro, improvisava. Desgraça de pobre se conserta com criatividade.

João pega mais um pedaço de torta.

“Eu voltei agora pra ficar/Porque aqui, aqui é meu lugar/ Eu voltei pras coisas que eu deixei/Eu voltei.” A lista segue com o Rei cantando “O portão”.

– Aos 16, me apaixonei por um homem 13 anos mais velho que eu, nosso vizinho de sítio. O nome era Cláudio Baff. Em Pérola, onde morávamos, todos conheciam o Cláudio como o Professor. Ele dava aula de datilografia, e eu, por ser pobre, não tinha condições frequentar o curso. A minha vida era ajudar os meus pais na roça.

O filho ri.

– E como surgiu a paixão?
– Ele andava todo arrumado: terno escuro, sapato engraxado, brilhantina no cabelo. Vez ou outra me oferecia um drops, uma bala 7Belo. Bobinha, eu aceitava. Me dizia que queria dar o coração. De todas as flores, a mais bonita é você, vizinha, ele falava. Eu ficava com falta de ar – lembra a mãe, sorrindo.

João pega mais café. Mesmo gostando do pai – ó Freud: nem todos matam o genitor! – a história lhe interessa, não causa ponta alguma de ciúme. Pensa que, um dia, no futuro, escreverá o passado da mãe. De alterações, só mudará os nomes dele, do pai e da mãe. Os da cidade e do professor serão mantidos fielmente. E a história será em terceira pessoa, com narrador onisciente. Nesta noite de confissão, o filho quer detalhes.

– E como é a história de que…
– Ele quase foi seu pai?
– É.
– Foi quando…

Uma propaganda do Youtube aparece. João pede um minuto para clicar na tela e sair do anúncio – ele não quer saber como abrir uma startup a partir de uma gigantesca imersão com coachs que vai mudar sua vida em 48 horas. Na lista de músicas, “O divã”, “As curvas da estrada de Santos” e “A distância” são as próximas.

– Continue, mãe.

“Relembro a casa com varanda/Muitas flores na janela/Minha mãe lá dentro dela/Me dizia num sorriso/Mas na lágrima um aviso/Pra que eu tivesse cuidado/Na partida pro futuro/ Eu ainda era puro/Mas num beijo disse adeus.”

– Adoro essa música, e fico feliz por você gostar do que eu gostava quando era jovem.
– Foco na história, dona Maria.

Ambos riem – e um pedaço de espinafre aparece no canino superior esquerdo de João. A mãe indica e o filho passa a língua para limpar o dente. Ele coloca mais café na xícara.

– De repente, Cláudio foi embora para Curitiba. Eu só soube um dia antes da viagem. Aí corri e fiz uma carta para ele. Escrevi: eu estou apaixonada, Cláudio. Não se vá, por favor. Dei para o irmão do Cláudio entregar. Fiquei na torcida, rezei um terço. Nada. Ele se foi. Não havia o que fazer. Era março de 1980.

“Essas recordações me matam/Essa recordações me matam.”

– Em abril, pouco tempo depois, seu pai apareceu. Eu passava em frente à casa dele para ir a escola, lá em Umuarama. E ele me olhava, sorria,me paquerava. Desde sempre o Edmilson foi carudo. Em pouco tempo, me chamou para comer um sorvete. Logo começamos a sair.

“Relembro bem a festa, o apito/E na multidão um grito/O sangue no linho branco/A paz de quem carregava/Em seus braços quem chorava/E no céu ainda olhava/E encontrava esperança/De um dia tão distante /Pelo menos por instantes/Encontrar a paz sonhada.”

– Aí, em junho, o Cláudio voltou a Pérola para visitar a família. O terno era azul –- a roupa nova indicou que ele tinha conseguido mudar de vida na capital.
– Como foi vê-lo, assim, do nada?
– Meu coração quase parou!
– …
– Lembrei da carta que tinha feito para ele…
– …
– …E tive ódio: eu havia ficado sem resposta.

A torta e o café acabam. A mãe ensaia se levantar para fazer mais, mas João pede para que ela fique. Quer o desenrolar da história.

“Eu prefiro as curvas da Estrada de Santos/ Onde eu tento esquecer/ Um amor que eu tive e vi pelo espelho/ Na distância se perder.”

– E ele te disse algo ou te procurou quando voltou?
– Não, mas o irmão dele sim. Um dia, no sítio, ele apareceu com uma carta. Disse que era do Cláudio. Não havia dúvidas: o conteúdo havia sido feito numa máquina de escrever.
– E o que dizia a carta, mãe?
– Que ele me amava, que sempre tinha me olhado na cerca, mas que morria de medo do seu avô. E que, no dia seguinte, às 12h, ele iria para Curitiba de ônibus. E que..
– Han?
– Ele…
– Fale!
– …Tinha uma passagem comprada pra eu ir junto!

“Mas se o amor que eu perdi/Eu novamente encontrar, oh, oh/ As curvas se acabam e na Estrada de Santos/Eu não vou mais passar/Não, não, não, não, não, não.”

– A senhora foi à rodoviária?
– Não.
– Por causa do pai?
– Não, a gente só tava saindo na época, nada sério. Não fui porque…
– …!
– …
– …!!
– Fui covarde – Maria diz. E João jura até hoje ter visto uma lágrima cair do olho esquerdo da mãe.

Ao fundo, a última música da playlist do Rei toca.

“Quantas vezes eu pensei voltar/E dizer que o meu amor nada mudou/Mas o meu silêncio foi maior/E na distância morro/Todo dia sem você saber.”

Maria olha o relógio. Vendo o adiantado da hora, ela se levanta, forçando um sorriso.

– Vou lavar a louça.

No quarto, o pai ainda assiste aos vídeos de luta livre. João procura um bloco de notas para escrever o que ouviu. O notebook permanece aberto.

“Eu só queria lhe dizer que eu/Tentei deixar de amar, não consegui/Se alguma vez você pensar em mim/Não se esqueça de lembrar/Que eu nunca te esqueci.”

 

Fale com o colunista pelo e-mail victorsimiao1@gmail.com.

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