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08 de maio de 2024

Redescobrindo o cachorrão de Maringá como sanduíche da saudade e de possibilidades infinitas


Por Marcos Cordiolli Publicado 11/07/2022 às 18h39 Atualizado 19/10/2022 às 10h49
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Foto: reprodução/Maringá Histórica

Eu sou um fanático por sanduíches. Por todos os tipos de sanduíches. As minhas primeiras experiências foram com os sanduíches de mortadela que comíamos em padarias de beira de estrada quando viaja na boleia de caminhão com o meu pai. Eram magníficos e ainda continuam apreciáveis ao meu paladar.

Na adolescência eu fui expectador de um grande momento na vida gastronômica de Maringá. A chegada dos trailers e carrinhos de cachorros-quentes ainda na década de 1970. Ofertando cachorros-quentes, ocuparam pontos estratégicos na cidade e batizaram o sanduíche de “Cachorrão”. Até hoje este nome é popular na cidade e eu fui surpreendido em outras cidades quando pedia aos atendentes um “cachorrão”. Alguns deduziam que era o cachorro quente, para outros eu precisei refazer o pedido… A cidade, no entanto, foi berço de uma novidade importante: o cachorro quente prensado, com sublimes vantagens de manter-se firme a cada mordida, enquanto os tradicionais sempre ameaçavam a tragédia de se derramarem sobre a roupa do comedor apressado. O termo “Cachorrão” ganhou outra variação, o “Dogão”, que inclusive tornou-se a mascote do time de futebol da cidade, o Maringá Futebol Clube.

Foto: Reprodução/Maringá Histórica

O “Cachorrão”, também, virou um prato caseiro e as padarias passaram a ofertar o pão branco em larga escala. No início, as salsichas não eram vendidas a granel ou em pacotes grandes como atualmente. Vinham enlatadas envoltas em uma camada de um produto oleoso translúcido, pouco apreciável aos olhos, mas que não impediam os prazeres do paladar depois que as salsichas eram aquecidas envoltas em molho de tomate.

Por ser assumidamente um fanático por sanduíches, sempre rendi alguns louvores ao tal Conde de Sandwich, que determinava aos seus serviçais que colocassem a carne no meio do pão para ele não ter que deixar as mesas de jogos. Ele, por isso, ficou mundialmente famoso, até mais que as ilhas austrais na Oceania que foram nomeadas em função de algum de seus parentes…

No início do século XX um alemão, nos Estados Unidos, que ganhava a vida vendendo salsichas aquecidas enfrentava um problema: como evitar que os clientes sujassem as mãos e queimassem os dedos. Os práticos guardanapos de papel ou espetos de madeira não deviam ser conhecidos ou acessíveis na época dele. Ele tentou emprestar luvas para os fregueses, mas o serviço parece não ter sido eficiente, pois as luvas descartáveis ainda não eram comercializadas na época, entretanto, convenhamos, este alemão era criativo. Este alemão, então, contratou uma panificadora de um parente para fazer os pães do tamanho da salsicha que comercializava. Ele deve ter feito o cálculo que os pães sairiam mais barato ou mais prático que as tais luvas… O sanduíche de salsicha estava inventado.

Foto: Reprodução

A iguaria logo migrou para os estádios de esportes, começando pelos jogos do Giants em Nova York. Dizem que a salsicha da época era da marca Duschund, o nome de um cachorro alemão (para nós brasileiro, é o popular Basset). Um cartunista, fez uma charge, com um basset no lugar da salsicha. A charge de um cachorro basset no pão gerou o nome, lógico, de hot dog (cachorro quente) para o sanduíche de salsicha. Os bassets, imagino, depois deste fato, foram apelidados de “salsichas” … O nome do sanduíche causou polêmica na época, pois muitos imaginaram que as salsichas fossem fabricadas com carne de cachorro, mobilizando as autoridades sanitárias…

Aqui em Maringá, analisando a lista da lancherias também encontrei uma variedade ampla: entre elas a carne de gado moída ou picada, frango desfiado e linguiça calabresa.

Foto: Marcos Cordiolli

O pão com salsicha virou um ativo gastronômico planetário, desde os populares vendidos nas ruas até as versões mais sofisticadas, assinadas por chefs renomados. O pão e a salsicha ganharam infindáveis tipos de acompanhamentos. Em Curitiba, por exemplo, ainda são populares carrinhos de ruas, com pelo menos 20 potes de cerâmica com diferentes ingredientes – como molhos de mostarda e ketchup, batatas fritas e cozidas, purês e variedades de conservas como as de milho verde, cebolinha e ervilha… Em sistema self service o freguês inclui tudo o que quiser e na quantidade que conseguir no pão com uma ou duas vinas – nome da salsicha no dialeto curitibano segundo o dicionário do soteropolitano Anthony Leahy (apesar do nome e biótipo irlandês). Eu, certa vez, contei 36 potes – portanto 36 ingredientes diferentes – num mesmo carrinho de cachorros quentes na Rua Chile. O proprietário afirmou que ele teria condição de entrar para Guiness Book por ofertar tamanha variedade de ingredientes para cachorros-quentes. Eu acredito que ele tenha razão….

Foto: Reprodução

Na linha gourmet já apreciei variedades de hot dogs, cujo diferencial eram as próprias salsichas. Algumas delas originárias da Europa Central; outras artesanais com misturas de carnes e especiarias. Eu mesmo tenho uma receita própria – que já foi popular entre os meus sobrinhos e as amigas de escola do ensino fundamental da minha filha… O grande diferencial era a mostarda annciene. Este sanduíche que denominávamos de “Sandubão” – distinto do “Big Marcos” a base de hambúrguer – era caprichado com uma mistura de batata palha com ketchup e mostarda, temperado com páprica doce e alho. A versão gourmet, para adultos, era mais sofisticada acrescentando outros tipos de molhos – especialmente mostardas de várias procedências – e especiarias…

Em Maringá, o cachorro-quente nomeado “cachorrão” mais do que popularidade virou um patrimônio imaterial local. A sua forma prensada, invenção local, já é apresentada em outras localidades como fiel ao original criado em Maringá. Uma sanduicheria de São Paulo, inclusive, homenageia em seu cardápio várias danceterias da cidade dos anos 1970 e 1990. Uma outra, também paulistana, organiza o cardápio com os nomes de logradouros de Maringá.

Ouvi certa vez uma história, que não sei se procede, que havia apenas três lojas do McDonald’s no mundo que eram deficitários– uma na Holanda, outra em Londres e a terceira em …. Maringá. Parece, que nem as geniais estratégias de marketing da megaempresa estariam conseguindo vencer a preferência da cidade pelo “cachorrão”. Hoje o McDonald’s como outras franquias mundiais e nacionais de hambúrgueres estão instaladas em Maringá e são bem frequentadas. O “Cachorrão”, porém, sobrevive e bem na cidade.

Maringá, por sua vez, será uma cidade referência em hamburguerias artesanais para o Brasil. As hamburguerias da cidade alcançaram um grau de excelência sem precedentes. Eu conheço apenas uma parte da hamburguerias da cidade, mas posso apontar uma dúzia delas que seriam destaque nacional em qualquer guia culinário.

No entanto, o cachorro quente ainda está em alta na cidade. Dia destes, a Rosana e eu, após um compromisso que se arrastou por mais tempo que esperávamos, passamos no tradicional kikão, da Rua Néo Alves Martins com a Avenida Herval, e pedimos dois sanduíches tradicionais.

Servidos ainda moda antiga, preservava a essência da forma e sabor. O dente penetra a maciez do pão, que encontra a salsicha, a mistura dos dois soma-se a dos tomates quadriculados, que acrescentam mais líquido a boca. Nas versões mais contemporâneas vem com batata-palha que acrescenta o crocante e sal. Nos antigos, ainda na rua, ele vinha com mais cebolas e mais caldo de vinagrete. Lembro que as últimas fatias de pão ainda ficavam encharcadas de vinagre. Eu pessoalmente, confesso, sinto saudades desta receita ancestral.

Foto: Reprodução

Na verdade, parece que havia duas categorias de “Cachorrões”. No início era mais comum a salsicha cozida em água e o molho de vinagrete com tomates em microcubos. A segunda, que substituiu a primeira, o cachorrão era servido com um espesso molho de tomates. Ambos encharcavam os pães e escorriam pelos dedos… até que inventaram a embalagem de plástico. Depois apareceu a versão prensada que também já reduzia a quantidade de molho.

As duas versões são, para mim, maravilhosas. Ambas, no entanto, precisam conter molho suficiente para encharcar o pão. Eu, geralmente, dispenso a mostarda no cachorro quente, prefiro o gosto do ketchup, adocicado, que na primeira versão, misturado com o vinagre que acompanha o tomate picado (que cumpria a função da mostrada na composição de sabores). Na segunda versão, o molho denso de tomate se basta como acompanhamento, dispensando até mesmo o ketchup. Nesta, às vezes, prefiro um toque de molho de pimenta vermelha.

As versões de cachorro quente para festas geralmente são elaboradas com pão francês o que faz uma diferença importante: no momento da mordida, o pão oferece mais resistência para separar os nacos. Nada grave, mas o pão branco é uma tradição que tem o seu valor, tanto pela suavidade quanto pela maciez das mordidas. Já o sanduíche de mortadela, eu penso, deve necessariamente ser elaborado com o pão francês ou italiano. Parece que sempre esperamos uma resistência da casca do pão para então sentirmos o sabor forte – e único – da mortadela. Este conceito também seria correspondente para os sanduíches de embutidos como o Parma, a copa, o italiano e o milanês que são mais consistentes e resistentes às mordidas. O sanduíche de embutidos cozidos como os de lombo e presunto são parceiros das salsichas e possuem mais harmonia quando elaborados com pães brancos.

Seguindo a recomendação do excelente Maringá Gastronômica, eu solicitei um dia destes, via app, um sanduíche do popular Lanches São Domingos que me pareceu similar ao Trem Bom, antigo Kiruba, ali da Avenida Cerro Azul. O “Cachorrão” vem no pão de hambúrguer e a lancheiria oferece acompanhamentos variados como o frango, carne, bacon, queijos… Ofertam uma espécie de x-tudo, com – até – hambúrguer, linguiça calabresa e mais uma infinidade de ingredientes…

Eu continuava, no entanto, interessado no “Cachorrão” tradicional. Escolhi o básico – pão, salsicha, tomate, alface – e usei as possibilidades do APP para inserir outros ingredientes. Solicitei o bacon, o ovo e a – já tradicional – batata-palha. Do sanduíche base pedi a retirada da alface e a inclusão de cebola (infelizmente não fui atendido).
[Aliás, eu creio que a alface é um erro em sanduíches quentes, basta poucos minutos para murchar e mais alguns outros para escurecer. Eu, como regra, solicito a retirada da alface de sanduíches. Nas minhas receitas de sanduíche, quando eu quero um vegetal verde, incluo folhas mais consistentes – e com sabores ativos – como o espinafre.]
A salsicha veio picada, o que de fato, é mais adequada ao formato do pão de hambúrguer. Era um sanduíche diferente daqueles mais tradicionais, porém expressava os vínculos de origem com o “Cachorrão”.

Maringá seguirá o seu caminho e será uma cidade referência nacional em hambúrgueres gourmets pois os chefs locais são muito ousados e, entretanto, efetivos nas entregas de sanduíches maravilhosos desta modalidade. No entanto, o pão branco com salsicha seguirá sendo um sanduíche arquetípico da cidade. Espero que a sanduicherias gourmets não abandonem o “Cachorrão”, que dediquem parte da sua criatividade e espaços em seus cardápios para este ativo gastronômico, com tantas possibilidades e ansioso pela criatividade culinária contemporânea.

O “cachorrão” também precisa continuar a ser ofertado em carrinhos de rua, como aquele da esquina da Rua Santos Dumont com a Rua vereador Basílio Sautchuk. Um dia destes, com um compromisso agendado nas proximidades, sai alguns minutos mais cedo, para comprar um “cachorrão”. Caprichei no ketchup. Caminhei pela Avenida Brasil, ao entardecer, enquanto “devorava” o “cachorrão”. Um gosto de infância com sentimento de saudades faz do “cachorrão” de Maringá e em Maringá um sanduíche ainda mais especial. Cada rua de Maringá ainda parece exalar aquele aroma maravilhoso que sentimos quando o atendente do carrinho de cachorro quente abre o reservatório de salsichas. Este aroma e a maciez das mordidas no pão branco com salsicha parecem harmônicas com os tapetes de vermelhos, brancos e amarelos das flores dos ipês da nossa cidade.

Marcos Cordiolli é maringaense que imigrou na adolescência para Curitiba e de lá para outras cidades. Teve, no entanto, a felicidade de voltar a morar na sua quinta década de vida em Maringá. Agora, como um flanner, está redescobrindo a cidade e seus encantos.
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