A FALSA REDENÇÃO DO RACISMO
Há muitas boas intenções em “Green Book – O Guia”. Mas já ouviram aquela máxima de que “de boas intenções o inferno está cheio”? Pois bem.
Logo no início da história, ambientada nos anos 1960, somos apresentados ao protagonista. Tony Lip é um pai de família, mora com a dócil esposa em Nova York e trabalha como segurança em uma boate chamada Copacabana. Conhecido por ser “durão” e pelo temperamento explosivo, ele é a pessoa que resolve com rapidez os problemas que acontecem no trabalho, e tudo à base da ignorância. Ainda no estabelecimento, consegue alguns trocos trapaceando os clientes mais ricos.
Tony é descendente de italianos, vive com a casa cheia de parentes, que também vieram da Itália. Fala alto e gesticulando, tem o apetite equivalente a dois elefantes e nem sempre está em dia com a higiene pessoal. Pra resumir a descrição, basta imaginar a caricatura ambulante que se tem do homem europeu de classe média baixa.
Em casa, sob a vigia dos familiares, ele observa dois homens negros que foram chamados pela esposa para consertar um vazamento na cozinha. Ela, educadamente, oferece um copo de água aos encanadores. Ao saírem do recinto, Tony recolhe os copos usados e em vez de lavar a louça, decide jogá-los na lixeira. Além dos desvios de caráter já apresentados, ainda é racista. Precisando de trabalho, já que a casa noturna fechou as portas temporariamente, ele é indicado para ser o motorista particular de um “doutor”. Ao conhecer o passageiro que iria lhe empregar, descobre que o “doutor” é na verdade um pianista negro, cuja especialidade é a música. Entra em cena o personagem Don Shirley.
Don Shirley é um homem negro, bastante paciente, sofisticado e que arranca aplausos com facilidade da elite branca quando se apresenta em recitais com a sua banda. No entanto, mesmo com o sucesso, não desfruta da posição de artista por conta da cor de sua pele, então prefere ficar isolado, acompanhado somente de um copo e uma garrafa de whisky. Seus planos de carreira incluem nos dias seguintes uma turnê, e por conta disso, convida Tony para ser seu motorista. Depois de acertarem as condições de pagamento, os dois homens, com personalidades completamente diferentes, se confinam num carro por 2 meses e saem em viagem pelo sul dos Estados Unidos, conhecido pelo conservadorismo e intolerância racial – ainda mais agravada no período que a trama se desdobra.
Como não poderia ser diferente, o recheio de “Green Book” tem diversas cenas com atitudes racistas explícitas e humilhantes para Shirley, como não ser permitido a usar o banheiro de um local privado, ser proibido de entrar em lojas e fazer refeições em restaurantes, ser abordado por policiais sem motivo aparente, etc. Neste processo, Tony testemunha as diversas injustiças que enfrenta o companheiro de estrada e vai tomando consciência de seus atos, sendo que é uma das pessoas que perpetuam o preconceito.
Entretanto, a redenção do protagonista – a principal “mensagem” do filme – é feita nas coxas, norteada por um roteiro artificial e covarde, que sempre dá um passo pra trás quando decide introduzir alguma discussão relevante sobre o tema. Há espaço na trama e haveria motivos para que as diferenças entre o branco e o negro fossem problematizadas com mais afinco, afinal “Green Book” é um road movie cujos personagens ficam 2 meses (!!!) viajando juntos. Em vez de abordar o assunto com mais clareza, os roteiristas optam por sublinhar a posição vulnerável de Shirley, colocando-o em várias situações deploráveis para o espectador se comover, sentir-se desconfortável e reafirmar o óbvio: “nossa, realmente o sul dos Estados Unidos pegava pesado com os negros”.
A reflexão que o filme poderia despertar com um discurso mais substancial é completamente soterrada por amostras de racismo. Uma atrás da outra. E só. Até a tal redenção de Tony é questionável, porque é baseada unicamente na sensação de mal-estar do personagem diante dos atos preconceituosos de terceiros, o que não quer dizer que findada a viagem, o mesmo não vai endossar o racismo como antes. Não é convincente. Tony não se tornou “um homem melhor” e “livre da intolerância racial” como o filme tenta mostrar. A unidimensionalidade do roteiro e a condução canhestra assinada por Peter Farrelly não permitem o alcance de uma nota maior.
E o que mais impressiona é o Oscar abraçar essa patacoada, indicando “Green Book” até em Melhor Roteiro Original. Vendo por outro lado, não é surpresa nenhuma o reconhecimento vindo da mesma academia que concedeu a estatueta de Melhor Filme para “Conduzindo Miss Daisy” (1989) – que, aliás, divide muitas semelhanças com “Green Book”. A questão é que “Conduzindo Miss Daisy” foi lançado há 30 anos; “Green Book”, em pleno 2019, já nasceu ultrapassado.
Limitações à parte, é preciso reconhecer o comprometimento dos intérpretes. Mesmo rendendo-se ao mais puro estereótipo, Viggo Mortensen consegue desviar das banalidades e constrói Tony com bastante carisma e desenvoltura, reproduzindo os trejeitos típicos da “classe” que busca representar. Exalando elegância, temos o espetacular Mahershala Ali como Don Shirley, numa atuação totalmente diferente do traficante de drogas de “Moonlight” (2016), papel que lhe rendeu o Oscar. A química entre os atores é excelente, o que torna a sessão mais suportável.
Talvez pela intenção inicial de ser um feel good movie, “Green Book” opte pelo comodismo. E isso é bastante decepcionante por um filme abordar esta temática. No fim, é um verdadeiro festival de oportunidades desperdiçadas e tão profundo quanto uma bacia d’água.