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28 de abril de 2024

ANALISANDO ESSA CADEIA HEREDITÁRIA…


Por Elton Telles Publicado 08/11/2019 às 22h43 Atualizado 25/02/2023 às 07h47
 Tempo de leitura estimado: 00:00

Na onda do Novo Cinema Coreano, que começou a receber mais visibilidade em meados da década passada, o nome de Bong Joon-ho é um dos que se destacam. Além da excelência das produções que assina como realizador, uma característica que chama a atenção em sua filmografia robusta é a habilidade de combinar uma essência autoral, ao atribuir a seus filmes uma linguagem/estética próprias, com manuseio familiar e atrativo ao público médio, sempre de maneira surpreendente.

No maravilhoso “Memórias de um Assassino” (2003), por exemplo, acompanhamos uma história comum de investigação concluída com um plot twist memorável; ou “O Hospedeiro” (2006) e a clássica narrativa bem encorpada do monstro químico que ameaça uma cidade; temos ainda um drama familiar em “Mother” (2009), engrandecido com a embasbacante surpresa no ato final. Isso sem mencionar as incursões de um cinema relativamente mais comercial, como “O Expresso do Amanhã” (2013) e “Okja” (2017), ambos palatáveis, mas nunca sem identidade. Em resumo, Bong Joon-ho protocola um cinema inteligente, acessível e com atestado de originalidade. “Parasita”, o seu melhor filme, não foge a esta regra.

É incrível como o cineasta é bem sucedido em tirar o chão do espectador, sobretudo quando adiciona diferentes rumos e camadas a uma trama inicialmente adocicada. Em “Parasita”, o que a princípio é apresentado como uma comédia de troca de papéis muda totalmente a chave para uma sátira social explosiva e brilhante sobre privilégio e consciência de classe. Esta conversão, que implica integralmente a alteração de tom da narrativa, é trabalho digno de mestre.

“Parasita” articula uma fábula perspicaz e objetiva sobre como o sistema capitalista converte os cidadãos de menor poder aquisitivo em criaturas invisíveis, em fantasmas que habitam o subsolo. Nunca soando inverossímil, embora o flerte com o absurdo seja evidente, o enredo oferece diversos elementos simbólicos que se revelam imponentes porque são intrínsecos à trama, em vez de meros subterfúgios para engendrar uma crítica com reflexões temporárias. A organicidade do roteiro é uma das razões que faz de “Parasita” um filme tão especial.

Os elogios ao roteiro, escrito a quatro mãos por Joon-ho e Jin Won Han, prosseguem. Outro aspecto admirável é a rejeição a qualquer estigma de vilania e maniqueísmo. Nenhum personagem é identificado como “vilão” na história, tampouco vítima: eles apenas dançam conforme a música e reproduzem comportamentos ajustados à realidade em que estão inseridos, o que é compreensível, porém não exatamente aceitável. De um lado, temos os membros de uma família pobre que, oprimidos pela repressão econômica, buscam meios de sobreviver nem que seja aplicando golpes; do outro, uma família abastada, cheia de oportunidades facilitadas pelo capital, oriundo da exploração da mão de obra alheia.

Neste cenário, o filme alterna frequentemente a sua intitulação e transfere para o espectador concluir quem são os verdadeiros parasitas. Os insights catalisados pelo roteiro permitem esse deslocamento e a possível conclusão de que todos, independentemente da classe social, podem agir como sanguessugas e viver às custas de outrem.

Toda a fúria do espetacular roteiro é traduzida em imagens pelo olhar visionário de Bong Joon-ho, cuja decupagem das cenas aqui atinge uma nota maior. Particularmente, a cena de uma inundação e a sequência vibrante de um banquete proibido são exemplos do domínio superlativo, tanto estético quanto narrativo, do cineasta. Não é qualquer realizador que é habilidoso para, num estalar de dedos, extrair tensão de uma situação que aparentemente não é arriscada. Em “Parasita”, há uma turbulenta oscilação de atmosfera, que, felizmente, é administrada de maneira primorosa. Essa magnitude é aguçada pela montagem fluida e, por vezes, inventiva creditada ao excelente Jinmo Yang, responsável por uma das transições de cenas mais impactantes do cinema recente.

Sobre o elenco, é até difícil por onde começar, visto os desempenhos magníficos do corpo de atores. Além da desenvoltura em defender personalidades tão diferentes entre si e mesmo assim formular uma unidade de personas críveis, é muito satisfatório observar como o talento dos intérpretes, aliada à generosa direção, transforma cada personagem representado em um indivíduo rico, com background. Não de carne e osso, mas outra personagem muito importante nessa equação é a mansão onde grande parte da trama se desenvolve. A mansão é a única que sabe de todos os segredos, contribuição do impecável design artístico, que merece todos os elogios também por ressaltar a disparidade da casa dos ricos para o barraco subterrâneo da família pobre.

Parceiro habitual do diretor, o patriarca vivido por Song Kang-ho consegue equilibrar os dramas e a veia cômica com perfeição, ao passo que a mãe rica da ótima Yeo-jeong Jo dosa ingenuidade e gentileza sem, no entanto, descer do salto alto (“ela só é gentil porque é rica”, opina um deles). Essa fala, inclusive, é crucial para entender como o roteiro delineia as figuras, principalmente os ricos, que são amigáveis desde que seus interesses sejam atendidos. Todavia, vomitam com naturalidade observações burguesas e preconceituosas como “as pessoas que andam de metrô tem um cheiro especial”. Inclusive, essa questão do cheiro dos outros é determinante para o desfecho da história, aflitivo e filmado com esmero.

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, “Parasita” faz um recorte cirúrgico da perpetuação da desigualdade social, um jogo cíclico com perdedor definido, em que o capitalismo é o árbitro enviesado que dita as regras.

2019 foi um ano extraordinário para o cinema mundial e “Parasita”, que já nasce clássico, tem enorme influência nesta distinção.

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