Quebrando barreiras: primeiro juiz cego da Justiça do Trabalho é maringaense
No dia 26 de julho, última sexta-feira, tomou posse o 1º juiz cego da Justiça do Trabalho no País, no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região, em São Paulo. No cargo, o maringaense Márcio Aparecido da Cruz Germano da Silva, de 44 anos, que atuava anteriormente como analista judiciário no TRT da 9ª região, em Curitiba, desde 2011.
Márcio nasceu em Maringá e cresceu no Jardim Independência, em Sarandi. Ele começou a perder a visão aos quatro anos de idade por conta de uma doença autoimune severa, provocada por um erro de diagnóstico e o consequente uso indevido de um medicamento, que provocou sequelas na visão do olho esquerdo. Chegou a ser alfabetizado, mas aos oito anos, um outro erro, em um atendimento oftalmológico, causou a perda da visão do olho direito, deixando-o totalmente cego e o menino foi expulso da escola, que na época, não tinha condições de oferecer um ensino inclusivo a alguém que não enxergava.
Obstáculos educacionais de um estudante cego
Márcio Germano aprendeu braile com um conhecido da família que também era cego e tinha uma irmã que era professora. Foi ela quem trouxe o garoto de volta para a sala de aula, quase três anos depois, em um projeto piloto na cidade de Sarandi, como ele relembra.
“Eu ficava pela manhã acompanhando as aulas e utilizava o braile no Colégio Estadual Olavo Bilac, em Sarandi, e lá eu fiquei até o segundo ano do ensino médio. No final do ensino médio eu ganhei uma bolsa de estudos em uma escola privada de Maringá, o Colégio Nobel, onde estudei o terceirão, até ser aprovado no vestibular”, conta.
Márcio também foi pioneiro como estudante na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Ele foi o primeiro estudante com deficiência visual do curso de Direito da instituição. Para essa fase, havia pouquíssimos livros em braile e Germano não tinha computador em casa para facilitar o processo a partir de leitura virtual. Foi só no meio do curso que ganhou um computador de um colega de classe.
“Tanto no meu ensino fundamental, quanto no Nobel, e também na UEM, ainda não havia material adaptado na linguagem braile e eu também não havia sido inserido no mundo digital, não utilizava os computadores com softwares de leitura de tela em decorrência de uma barreira econômica e social. Minha família era muito humilde, não tinha condição financeira. No final do segundo ano da faculdade um colega me deu um computador e eu fui aprender a utilizar em uma ONG e depois virei estagiário de lá”, diz Germano.
Inclusão e acolhimento
O início da trajetória profissional se interligou ao auxílio às pessoas com deficiência. Márcio Germano estagiou também na Agência do Trabalhador de Maringá intermediando o acesso de PCDs ao mercado de trabalho e no Procon, implementando a divisão de atendimento especializado à pessoa com deficiência e o desenvolvimento de políticas para a inclusão de PCDs no comércio. “Em parceria com o CVI (Centro De Vida Independente De Maringá), a gente desenvolveu uma cartilha de orientação do consumidor e alguns materiais com tiragem em braile”, conta.
Ele começou a trabalhar na Justiça Federal como técnico judiciário depois de passar em um concurso em 2004. Uma colega o ajudou a estudar, lendo para ele. No entanto, havia uma desconfiança se, por ser cego, poderia ou não trabalhar no judiciário em decorrência do processo ser físico. “Foi um processo paulatino e gradual das minhas atividades dentro da vara. Comecei tirando xerox, depois perfurava processo para fazer o encadernamento e, durante esses dias, ia conversando com os colegas de trabalho e entendendo as funções. Junto com o diretor de secretaria e mediante a autorização do juiz titular da vara, eu fui aprendendo formas de desenvolver as atividades que os meus colegas desenvolviam. Até que no final de 2009 foi implantado o processo judicial eletrônico e eu pude passar a desempenhar outras funções”, relata Germano.
Aprovado em outro concurso, em 2011 Márcio se mudou para a capital para atuar como analista judiciário no Tribunal Regional do Trabalho e passou a focar nos concursos para a magistratura. Mas nem nesse preparo, novos obstáculos surgiram. “Tinha pouco material disponível e poucos cursinhos tinham plataformas virtuais preparadas para pessoas cegas. Toquei meus estudos de forma desorganizada e até inviabilizada por essa barreira de acesso ao material”. Ele só começou a encontrar mais materiais e plataformas mais adaptadas a partir de 2019. Foram quatro anos estudando quatro horas por dia durante as madrugadas, antes de ir para o trabalho.
O concurso da magistratura teve quase 18 mil inscritos e 229 pessoas apenas foram aprovadas. Na hora da classificação, ele se valeu do direito de PCD para avançar na lista e poder escolher onde queria trabalhar. Ele optou por São Paulo, onde tomou posse na última sexta-feira, 26, tornando-se o primeiro juiz de carreira cego do Brasil.
No discurso, durante a cerimônia, ele falou sobre a importância do acolhimento no exercício da função. “Nós vamos desempenhar uma função de uma justiça principalmente social em que aquele que procura o poder judiciário precisa ter voz. Uma voz que minha família não teve quando eu sofri os erros médicos e muitas famílias aqui não tiveram. Então, que nós sejamos essa interlocução entre aquele que vai para o poder judiciário, o empregador ou empregado. Que eles se sintam acolhidos. Que eles sintam que o Estado, o juiz, não se esqueceu deles. E que na hora de entregar as nossas decisões sejamos pautados por essa solidariedade, pela retidão de caráter e pela ideia de que o direito do trabalho permeia a relação mais essencial de todo ser humano, que é a relação do trabalho que provê o respectivo sustento”.