O contragolpe do Estado é o verdadeiro golpe
O turbilhão nacional não para: prisões preventivas de generais para evitar atrapalhar investigações que já acabaram, ministros do STF que são vítimas e juízes do mesmo caso, redes sociais que são reguladas para, em seguida, o governo pedir exclusão de críticas a suas políticas públicas, a justiça eleitoral gerando mais políticos de direita inelegíveis do que formigas em doce de coco, pessoas com medo de falar, congressistas sem imunidade parlamentar.
Se há quem duvide ter sido tentado um golpe no país há dois anos, nenhuma dúvida há de que as autoridades do Estado empreendem, neste momento, contra seus adversários políticos um violento contragolpe, no qual o Direito foi cooptado como instrumento político de caça a adversários de quem está no poder.
Se golpe é ruim, contragolpe é pior. Caso tenha se desejado um golpe, uma coisa é certa: não foi adiante. Já o contragolpe do Estado está a pleno vapor, destruindo a institucionalidade do país: juiz se tornou rei, Suprema Corte se fez governo, governo virou aliado de rei, Congresso foi para o calabouço e o Direito e a Constituição se tornaram nada. Ao ensinar Constituição nas universidades, sinto-me constrangido, envergonhado, tanto quanto se eu fosse o guia de uma excursão de adultos pelos parques fictícios da Disney.
É preciso ser muito tolo, cego ou ingênuo para acreditar que o contragolpe do Estado vai assegurar a democracia, tornar viável a pacificação de que o país tanto precisa. Teremos autoridades tão ingênuas a ponto de não enxergarem que não haverá país se esquerda e direita não se aceitarem mutuamente, se juízes não voltarem a julgar, se governos não voltarem a se preocupar com governança?
Duvido muito. Acredito mais que temam que a direita seja a única capaz de viver de votos em um país pacificado. Afinal, a melhor proposta da esquerda hoje para se eleger é convencer as pessoas a terem medo da direita. Além disso, juízes não terão chance de serem tão poderosos e influentes politicamente em um país acalmado.
A pacificação não interessa a quem exerce hoje o poder no país, por isso, o contragolpe do Estado é muito mais perverso. E, como está corroendo por dentro das entranhas das instituições, como está rasgando o Direito e a Constituição, talvez seja o golpe mais perigoso, o golpe definitivo, o verdadeiro golpe, o golpe sem volta.
Sobre o autor
André Marsiglia é advogado constitucionalista, especialista em liberdade de expressão. Formado em Direito e Letras pela USP. Mestre e doutorando pela PUC-SP. É fundador do Instituto Speech and Press. Foi consultor jurídico da Repórteres Sem Fronteiras (RSF). É membro da Comissão de Mídias da OAB, da Comissão de Mídia e Entretenimento do IASP e membro julgador do Conselho de Ética do CONAR. Escreve sobre liberdade de expressão e judiciário, sempre às terças-feiras, no Portal GMC Online
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