“A esquerda ainda não está nem aí”
O aplaudido e importante filme “Ainda estou aqui” mostra que durante a ditadura militar houve censura, tortura e morte, com vítimas da esquerda. Certo. Mas parte da esquerda tem usado o filme para fazer uma metáfora política sacana com os réus do dia 8 de Janeiro, comparando-os aos militares opressores da ditadura, dizendo que ambos colocaram a democracia em risco e que ela, esquerda, segue sendo a única vítima de toda e qualquer ditadura.
A situação que temos no país atualmente não é nem menos grave, nem menos violenta que a ditadura retratada no filme. Os réus do dia 8 de janeiro são vítimas, presos políticos e têm sido condenados sob regime jurídico de exceção: sem individualização da conduta, sem julgamento presencial, com “bis in idem”, quando penas por dois crimes idênticos são somadas, o que é ilegal.
Tivemos mortes, como a de Clezão. Injustiças evidentes, como a de um morador de rua, solto na semana passada, mas que havia sido preso em flagrante por incitar as Forças Armadas contra os poderes constitucionais. Quando foram ver, ele estava na Praça dos Três Poderes pedindo comida.
A emoção que a esquerda dedica ao “Ainda estou aqui” é legítima, porém, torna-se um raivoso “não estamos nem aí”, quando os destinatários são presos de ideologia diferente.
A esquerda, que enxerga com horror a ditadura militar retratada no filme, não consegue sequer criticar a ditadura venezuelana de Maduro, enxergando-a como um governo democrático. Choram-se uns mortos, ignoram-se outros.
No mês passado, circulou um vídeo que mostrava a plateia de um show de Caetano Veloso gritando, em êxtase, “sem anistia”. Dizem que a razão era a presença de um dos ministros do STF no evento. Ao saber do episódio, veio-me à cabeça o verso de uma das canções de Caetano e Gilberto Gil que, em dado momento, diz para pensarmos no Brasil como um Haiti sempre que “o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal”.
Se o cardeal da canção tem de ver mais espírito no marginal, a esquerda, que vê tanto espírito no marginal e nenhum no feto, tem de reaprender a distribuir seus afetos e dores para os outros que não são eles mesmos, para os que não lhe são espelho.
Uma ideologia capaz de pensar apenas na sua própria dor se moverá somente pelo seu próprio interesse, terminará incapaz de defender qualquer valor coletivo, especialmente um valor humano.
Sobre o autor
André Marsiglia é advogado constitucionalista, especialista em liberdade de expressão. Formado em Direito e Letras pela USP. Mestre e doutorando pela PUC-SP. É fundador do Instituto Speech and Press. Foi consultor jurídico da Repórteres Sem Fronteiras (RSF). É membro da Comissão de Mídias da OAB, da Comissão de Mídia e Entretenimento do IASP e membro julgador do Conselho de Ética do CONAR. Escreve sobre liberdade de expressão e judiciário, sempre às terças-feiras, no Portal GMC Online
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