28 de julho de 2025

La soberanía soy yo 


Por André Marsiglia Publicado 15/07/2025 às 16h07
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No Egito mameluco, as orações de sexta-feira proclamadas em nome do sultão e seu nome recitado nas mesquitas, diante do povo, mostrava que a soberania estava com ele, era ele. O mesmo se podia dizer do monarca absolutista francês Luís XIV, quando proclamou “L’État c’est moi”. Séculos depois, na Alemanha nazista, o princípio ainda era o mesmo: a vontade do Führer era a lei. Toda a ordem jurídica derivava dele. A soberania era o líder.

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Foto: Agência Brasil

Quando observamos esses fenômenos, podemos perceber um traço constante: regimes autoritários não renunciam à ideia de soberania, ao contrário, reivindicam-na como fundamento de sua legitimidade. Toda arbitrariedade se justifica em nome de proteger a soberania. Toda censura é apresentada como defesa da ordem. Toda perseguição política se disfarça de zelo patriótico.

Talvez possa ser essa uma boa forma de identificar ditaduras não declaradas: quando alguém, um órgão ou poder de Estado se arroga o direito de definir sozinho os limites da própria atuação e coloca qualquer crítica a isso como um ataque à soberania de todos.

Quando Trump relacionou seu tarifaço com os sinais de deterioração institucional do Brasil, com os mandos e desmandos do STF, a resposta de Lula foi oferecer jabuticabas aos EUA, num gesto poliana, algo mais pueril ainda que propor tomar uma cervejinha para acabar com a guerra da Ucrânia. Enquanto isso, vozes como a de Barroso e Gilmar foram contundentes, pregando resistência, em nome da soberania. E Moraes, sempre agressivo, saiu punindo de novo a Rumble em território dos EUA, claramente uma decisão mais provocativa que efetiva. 

Ou seja, se o recado de Trump foi: vocês estão nas mãos de ministros do STF que cometem ilegalidades e atrapalham as liberdades, inclusive comerciais, a resposta ilegítima e ilegal dos ministros mostrou que ele tinha razão. 

No entanto, no lugar de ouvirmos o mensageiro, rejeitamos a voz externa, e estamos defendendo nossa soberania autoritariamente personalizada nos ministros do STF, como se fosse o caminho certo.

O impulso de rejeitarmos qualquer voz externa, qualquer mensagem de que estamos nos perdendo institucionalmente, parece natural, mas revela uma fragilidade profunda: a recusa em nos submetermos a um exame de autoconsciência. É mais fácil atacar o mensageiro do que investigar a mensagem.

Soberania, no sentido mais profundo, é a base que sustenta a legitimidade democrática. Quando a soberania é rebaixada a mero slogan patriótico, deixa de ser um conceito essencial ao Estado de Direito e vira pretexto retórico para quem deseja controle. Toda ditadura é assim: proclama a própria soberania, enquanto destrói os limites que a tornam legítima.

Talvez seja a hora de colocar a nossa democracia no divã. Antes de acusar o mundo de complô, cabe perguntar: será que, em algum grau, eles têm razão?

Sobre o autor

André Marsiglia é advogado constitucionalista, especialista em liberdade de expressão. Formado em Direito e Letras pela USP. Mestre e doutorando pela PUC-SP. É fundador do Instituto Speech and Press. Foi consultor jurídico da Repórteres Sem Fronteiras (RSF). É membro da Comissão de Mídias da OAB, da Comissão de Mídia e Entretenimento do IASP e membro julgador do Conselho de Ética do CONAR. Escreve sobre liberdade de expressão e judiciário, sempre às terças-feiras, no Portal GMC Online

As opiniões do colunista não necessariamente refletem a opinião do veículo.

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