11 de agosto de 2025

O caso Justus e  a liberdade como enlatado de prateleira


Por André Marsiglia Publicado 08/07/2025 às 15h00
Ouvir: 04:06

O recente episódio em que um professor e uma psicanalista destilaram ofensas contra a filha de Roberto Justus escancarou um fenômeno corriqueiro no Brasil: a liberdade de expressão como peça decorativa, acionada apenas quando convém.

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Foto: Instagram/Reprodução

A cena se repetiu como de costume. De um lado, vozes progressistas passaram a relativizar os ataques, afirmando que eram apenas humor ácido, crítica social ou opinião pessoal. Curiosamente, muitas dessas mesmas pessoas vivem a pregar a regulação das redes, a censura de conteúdos tidos como tóxicos e a responsabilização civil de quem ousa expressar opiniões consideradas ofensivas a seus grupos de afinidade. Quando a vítima muda de lado no tabuleiro ideológico, a régua moral também muda.

De outro lado, setores conservadores e liberais que costumam denunciar os abusos do “politicamente correto” e a perseguição de humoristas — como no caso de Léo Lins —, de repente clamavam por punição exemplar, banimento das redes e responsabilização criminal. Tudo porque o alvo, desta vez, era um empresário com quem simpatizam.

Essa dinâmica é a negação em estado puro da ideia de liberdade como valor. Quando a liberdade de expressão só é defendida quando nos favorece, ela deixa de ser princípio democrático e vira mero instrumento de uso pessoal. É fácil bradar por liberdade para si e exigir mordaça ao outro. Difícil é sustentar coerência quando o discurso adversário nos incomoda, fere ou revolta.

O verdadeiro teste da liberdade é justamente esse: suportar que até mesmo quem detestamos, ou quem diz absurdos que nos afrontam, tenha o direito de falar. Não há qualquer virtude em defender a palavra de quem está do nosso lado. Virtude democrática é aceitar que a liberdade de expressão é escudo coletivo, e não trincheira particular.

No Brasil, esse apego à liberdade como utensílio ocasional decorre de uma cultura política rasa. Não há compromisso autêntico com valores constitucionais. Só há utilitarismo. Quando o discurso nos incomoda, transformamos liberdade em discurso de ódio, crime ou violência simbólica. Quando nos interessa, enaltecemos a coragem do “falante”

Enquanto tratarmos a liberdade como enlatado de prateleira, disponível apenas para temperar as nossas causas, não poderemos reclamar quando outro vier exigir o silêncio que hoje promovemos. Democracia não é um sistema criado para proteger só as nossas sensibilidades. É um ambiente em que todas as vozes, inclusive as repulsivas, têm direito de existir.

É por isso que toda vez que alguém prega o controle da fala alheia, em nome de qualquer virtude, está apenas abrindo espaço para que amanhã a própria fala também seja regulada. Não há meio-termo: liberdade de expressão ou existe para todos, inclusive os desagradáveis, ou não existe para ninguém.

Sobre o autor

André Marsiglia é advogado constitucionalista, especialista em liberdade de expressão. Formado em Direito e Letras pela USP. Mestre e doutorando pela PUC-SP. É fundador do Instituto Speech and Press. Foi consultor jurídico da Repórteres Sem Fronteiras (RSF). É membro da Comissão de Mídias da OAB, da Comissão de Mídia e Entretenimento do IASP e membro julgador do Conselho de Ética do CONAR. Escreve sobre liberdade de expressão e judiciário, sempre às terças-feiras, no Portal GMC Online

As opiniões do colunista não necessariamente refletem a opinião do veículo.

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