20 de junho de 2025

STF: um tribunal medieval


Por André Marsiglia Publicado 10/06/2025 às 14h17
Ouvir: 03:55

A punição não deve ultrapassar a pessoa do condenado. Esse princípio, consagrado no art. 5º, inciso XLV da Constituição, é uma das garantias mais fundamentais do Estado de Direito moderno. 

image
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

É o que nos separa da tortura, da barbárie, do Direito usado como vingança, como instrumento para se obter a qualquer preço um resultado. Punir a família do réu, a comunidade do réu, o círculo simbólico do réu é o que fazem invasores em guerras desleais. Foi o que desejaram fazer com os apóstolos de Cristo, o que ocorreu com Tiradentes, cuja execução foi acompanhada de maldições a descendentes, da destruição dos bens de sua família, e é o que estamos permitindo acontecer no Brasil. 

O caso mais recente partiu do ministro Alexandre de Moraes, que, ao julgar a deputada Carla Zambelli, ordenou o bloqueio das redes sociais não apenas da parlamentar, mas também de sua mãe e de seu filho.

Mas a prática de punir terceiros por atos alheios não é de agora na trajetória do ministro. Ela já havia se manifestado no episódio da suspensão do Twitter (hoje X) no Brasil, em que Moraes estabeleceu punições e ameaças aos usuários da plataforma, caso acessassem a rede por VPN. O cidadão, alheio ao processo, seria punido por um litígio entre a Corte e a empresa estrangeira. O mesmo também ocorreu quando o ministro decidiu cobrar da Starlink as dívidas do X, empresas que não são, nem eram, juridicamente ligadas. O próprio réu colaborador, Mauro Cid, no processo de golpe de Estado, teve sua família mencionada e supostamente ameaçada de consequências. 

Essa lógica de punição reflexa — ou indireta — tem se disseminado e feito escola para além dos muros do ministro Moraes e do Supremo Tribunal Federal. No caso do humorista Léo Lins, a condenação recente não distinguiu o artista do personagem, atribuindo ao indivíduo a responsabilidade criminal por um texto ficcional. A consequência é grave: o Judiciário não mais reconhece o espaço simbólico da arte, da ironia, da criação, do outro. Tudo vale para se obter o resultado condenatório. Todos valem como instrumentos de um direito ideológico e político. 

A vedação da pena a terceiros faz parte de um pacote de abusos que o Direito abandonou com o passar do tempo: penas corporais, degredo, tortura e a execução como espetáculo. Ou seja, não se pune mãe, filho, colega, da mesma forma que não se usa amputar membros ou açoitar em praça pública.

Se naturalizarmos e retornarmos às punições a terceiros, acabaremos retornando também às penas medievais. O arbítrio, quando não barrado, tende a crescer. E crescer, pasmem, em nome da ordem.

Sobre o autor

André Marsiglia é advogado constitucionalista, especialista em liberdade de expressão. Formado em Direito e Letras pela USP. Mestre e doutorando pela PUC-SP. É fundador do Instituto Speech and Press. Foi consultor jurídico da Repórteres Sem Fronteiras (RSF). É membro da Comissão de Mídias da OAB, da Comissão de Mídia e Entretenimento do IASP e membro julgador do Conselho de Ética do CONAR. Escreve sobre liberdade de expressão e judiciário, sempre às terças-feiras, no Portal GMC Online

As opiniões do colunista não necessariamente refletem a opinião do veículo.

Pauta do Leitor

Aconteceu algo e quer compartilhar?
Envie para nós!

WhatsApp da Redação