09 de maio de 2025

Mario e Francisco


Por Victor Simião Publicado 25/04/2025 às 13h14
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Sinto que perdi dois colegas recentemente. Pessoas que, embora eu não conversasse com elas, elas conversavam comigo: Papa Francisco e Mario Vargas Llosa. Ambos nascidos em 1936, latino-americanos. Ambos humanos demasiadamente humanos.

Post para Instagram de colagem de fotos de família com grade limpa em azul-claro e branco (5)
Foto: Vatican News/Divulgação

O primeiro, por óbvio, é o mais conhecido. Papa de número 266 na história da Igreja Católica, dizem que foi o mais revolucionário. Eu, que não vou à igreja, me sentia próximo dele, principalmente quando falava sobre acolher os pobres e as pessoas LGBTs; quando pediu perdão às vítimas de abuso sexual cometida por figuras católicas – e, por mais que possa parecer pouco, dentro da estrutura da instituição de dois mil anos, isso serviu para dar uma chacoalhada por dentro. Ah, e ele era argentino.

Já Mario Vargas Llosa, peruano, ganhou o prêmio Nobel de Literatura de 2010. Ao longo de quase seis décadas, escreveu livros que abordaram, por meio da ficção ou não, golpes militares (“A festa do bode”, “Tempos ásperos”), amor (“Tia Julia e o escrevinhador”), os problemas do Peru (“Conversas no Catedral”, “Cinco esquinas”). Era um dos gigantes que fizeram parte do chamado “boom latino-americano”, ao lado de nomes como Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes e Julio Cortázar. Literatura boa. Essa, sim, é minha a igreja.

Inicialmente de esquerda e apoiador da revolução cubana, Llosa ao longo das décadas se tornou de direita, defendendo, inclusive, o neoliberalismo, o que é, convenhamos, uma estupidez. Francisco, nascido Jorge Bergoglio, foi na juventude acusado de não ter sido suficientemente incisivo no combate à ditadura argentina enquanto era padre. Em seu país natal, vale o registro, era considerado conservador. Isso mudou quando alçou ao papado, algo plausível.

Eles são dois exemplos de como o ser humano muda. E está tudo bem, embora haja grupos, atualmente, cuja função social é vasculhar o que as pessoas disseram e fizeram, monitorando tudo em busca de um único deslize para invalidar esse fulano ou aquela sicrana. Ninguém é 100% coerente, e, caso você conheça alguém que diga que é, pode ter certeza que, na vida privada, faz coisas no mínimo estranhas – e está tudo bem (caso não seja racista, homofóbico e coisas do gênero).

Francisco e Mario. Tão diferentes, mas tão próximos a mim. Acho bonito (simbólico?) o fato de eles terem me estimulado intelectualmente. E tenho certeza (óbvio, né?), de que não só a mim. Num mundo cada vez mais rápido, fugaz e vazio, cuja atenção dura um reels de Instagram, ouvir o papa falar sobre cuidar do outro era um refúgio. Ele, aliás, escreveu muitos livros, apesar de eu nunca tê-los lido. Há uma obra dele me olhando aqui, no escritório, enquanto escrevo esta crônica. Calma, calma, um dia vou ler você.

Quanto ao Llosa, puxa vida… Tenho algumas histórias por causa dele. “A festa do bode”, um dos seus grandes livros, me foi dado pela Maria, uma das minhas mais queridas amigas. Esse romance, veja só, também foi debatido no Bons Casmurros, o meu clube de leitura do coração. Em sua obra e nas entrevistas, via nele um intelectual charmoso, sorridente. E digno – mesmo após ter rompido com García Márquez nos anos 1970, nunca deixou de elogiar a literatura feita pelo ex-amigo. Ele era raro, adjetivo que, em espanhol, tem mais de um significado.

A vida de cada um deles teve caminhos tortuosos, como de qualquer ser humano. Penso neles e vejo, entre outras características, a ideia de tolerância, algo que às vezes nos parece faltar. Agradeço aos dois por terem conversado comigo e aparecido, dias atrás, nos meus sonhos.

Estávamos no Bar do Zé. Llosa, mais chegado ao vinho que à cerveja, abriu uma exceção nessa noite. Francisco estava animado. Pedimos batata com queijo e bacon, uma Original bem gelada e uma porção de tilápia. Ao nosso redor, Celsinho e Robson, os garçons, sempre de olho se nossa garrafa ficava vazia.

Foi uma mesa de quase totalidade de divergências. Em relação à desigualdade social, o papa disse que eram os líderes globais que deveriam trabalhar para uma sociedade mais justa; Llosa, por sua vez, disse que deveria ser o mercado. Quanto ao casamento LGBT, Francisco se esquivou, dizendo que na Igreja é homem e mulher, mas que Deus ama a todos; já o escritor defendeu e afirmou que isso seria um exemplo de liberdade real. O tópico, daí, foi para música: o argentino garantiu, sorridente, que “Cheia de Manias”, do Raça Negra, era a melhor canção de todos os tempos; o peruano, levando na esportiva, contou que nada era mais poético do que o “didididididiê”, mas que a melhor canção que ele já ouvira em toda sua vida era “As curvas na estrada de santos”, do Roberto Carlos. Só houve uma convergência: “As quatro estações” do Reginaldo Rossi. Para ambos, uma música tão boa quanto “As quatro estações” do Vivaldi. Estávamos no outono, e no outono eu tenho mais amor.

Quanto a mim? Eu olhava tudo isso e pedia mais uma rodada para o Robson e o Celsinho. Aquela noite estava só começando.


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Victor Simião, 30, é jornalista e sociólogo. Ele fala sobre livros na rádio CBN Maringá e pode ser encontrado ou no Instagram ou pelo e-mail victorsimiao1@gmail.com

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