19 de abril de 2025

Obrigado por tudo, Duque


Por Victor Simião Publicado 10/04/2025 às 13h49
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duque

Duque chegou do nada. Orelhas levantadas, rabinho balançando, cor de caramelo. Não devia ter mais do que 40 centímetros. E quando eu digo de repente, é de repente mesmo. Eu estava arrumando a minha então nova casa quando, no quintal, vejo o bichinho latindo para mim. Ora, o portão estava fechado, o muro é alto, como esse cachorro chegou? Não quis pensar muito e aceitei. Seria bom ter uma nova companhia após terminar um casamento de oito anos. Eu nunca tinha tido um cachorro, eu também nunca tinha me separado. A vida e suas novidades. Um pouco agridoce, né?

O nome não veio de primeira. Duque. Decidi dá-lo porque, ouvindo Stevie Wonder enquanto limpava a sala, ele pareceu dançar ao som de “Sir Duke”, um dos hits do norte-americano. Foi engraçado – quem costumava balançar essa música comigo era Vanessa, minha ex-mulher. Todo final de semana, limpando o nosso apartamento, quando as primeiras notas começavam a tocar, a gente se abraçava e se mexia para lá e para cá. Oito anos. Depois de tudo, seriamos estranhos um para o outro.

– Seu nome vai ser Duque, viu?

Ele me sorriu latindo. E daí nasceu uma grande amizade. Foi com Duque que dividi as alegrias e as angústias da vida de solteiro. Foi para ele que contei não entender muito bem isso de rede social e as novas formas de interação.

– A mulher curte meus stories, meus posts, manda coração, foguinho, mas quando eu chamo para sair ela ou não responde ou responde que aquele dia não dá.

Ele me olhou atentamente com um osso de brinquedo na boca.

– O problema é que não dá naquele dia, nem no outro, nem no outro. E ela sempre tá no bar com outras pessoas.

Duque jogou o osso perto de mim. Ele queria que eu arremessasse para longe. Foi o que fiz.

– Talvez a vida seja mais fácil brincando assim, né? Sem ter que sair para bar, falar sobre a vida, fingir interesse, performar, chamar pra casa e depois se frustrar.

Ele retornou com o brinquedo entre seus caninos e seguiu olhando para mim, o rabo batendo de um lado para o outro, feliz.

Um dia cheguei mais alcoolizado do que de costume em casa, tirei meu tênis, sentei no chão e o Duque veio procurar carinho. Era algo por volta das duas da manhã. Contei para meu amigo que havia tido um encontro no Don Beer. Que a mulher era gente boa, divertida. Que após o terceiro chope ela até começou a rir das minhas piadas. Mas eu preferi ir embora. Passando a mão nele, comecei a chorar.

– Eu ainda amo a Vanessa, carinha. Como eu sinto falta dela. Sinto falta de a gente tomar café da manhã juntos no sábado, de a gente fazer figurinha um do outro no WhatsApp, eu sinto falta até da reclamação dela dizendo que deixo os livros jogados pela casa, dos almoços na casa do pai sem graça dela, até de ir à Igreja juntos.

Duque pareceu entender. Ele foi até o brinquedo, pegou e me trouxe. Assim que joguei o osso no quintal, ele correu, pegou e me devolveu. Ficamos alguns minutos assim, até que eu parasse de chorar. Ele queria que eu ficasse bem. E eu fiquei.

Oito anos. Às vezes eu realmente ficava mal. Não queria trabalhar, nem mesmo levantar, mas eu tinha de cumprir minhas obrigações. E Duque estava sempre me esperando. Latindo, brincando, correndo. Aos finais de semana, recebia amigos em casa. Todos se encantavam com Duque. Diziam que ele era esperto. Que entendia os sentimentos humanos. E eu, que nunca tinha tido um cachorro antes, passei a entender que sim. Todas as vezes que alguém falava de Vanessa e meu amigo estivesse por perto, ele latia forte, como se para impedir aquele assunto. Ele sabia: aquilo ainda me doía.

E foi assim por alguns meses até que, dias atrás, Vanessa me ligou. Oito anos. Disse que eu tinha de ir em nosso antigo apartamento buscar uma ou outra coisa que ainda estava por lá. Eu fui, e a gente conversou por horas. Foi quando a gente percebeu que ainda havia algo entre nós. A gente acabou passando a noite juntos e, no outro dia, quando cheguei em casa, Duque me esperava, me olhando de um jeito que me sabia feliz. Ele ficou ao meu lado, mas não quis brincar ou correr. No fundo, meu companheiro de quatro patas queria que eu aproveitasse aquele sentimento que me fazia tão bem.

Fato é que, depois desse dia, Vanessa e eu voltamos a conversar. Colocamos nossa história na balança e vimos que nossos erros eram perdoáveis e menores do que a gente imaginava que fossem. Até ontem, a gente vinha se reaproximando, quando então decidimos que reataríamos nosso casamento.

Hoje, quando cheguei em casa para pegar minhas coisas e voltar para o apartamento, Duque não estava em lugar nenhum. Eu procurei em todos os cômodos. Nada dele, a não ser o brinquedo, que joguei em vão, esperando que voltasse na boca dele. Meus olhos se encheram de lágrimas: o meu querido amigo já não estava mais ali. Apesar disso, eu retornaria à mulher que eu amo. Oito anos. Agridoce a vida, né, e eu já disse isso.

Fiquei com a sensação de que Duque tinha apenas uma missão. E que ela foi cumprida. Não tenho como não pensar que, nesse exato momento, ele já está na casa de outra pessoa. Não tem como não imaginar que essa pessoa está recém-separada. E não há como não supor que meu amigo está se preparando para ser o melhor amigo dessa pessoa ao longo dos próximos meses.

Obrigado por tudo, Duque.

(Crônica dedicada ao Luke, cachorrinho que se foi e que pertencia a um grande amigo.)


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Victor Simião, 30, é jornalista e sociólogo. Ele fala sobre livros na rádio CBN Maringá e pode ser encontrado ou no Instagram ou pelo e-mail victorsimiao1@gmail.com

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