09 de abril de 2025

Shakespeare e o rodinho de pia


Por Victor Simião Publicado 04/04/2025 às 18h26
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Me peguei pensando, dias atrás, que a vida de Shakespeare talvez tivesse sido muito mais legal se, no período em que ele viveu, existisse aspirador de pó, café passado na hora e rodinho de pia. Sim, itens simples, mas que, no dia a dia, dão cor à vida prosaica que cada um de nós leva. No tempo dele, nada disso havia sido criado. Era mais comum, isto sim, encontrar cabeças estocadas em barras colocadas na entrada de cidades como Londres.

Explico. Lendo o livro “Como Shakespeare se tornou Shakespeare”, de Stephen Greenblatt, o autor tenta, a partir de uma série de informações, reconstituir a vida do bardo inglês, autor de obras que marcaram a história da literatura, como “Hamlet”, “O mercador de Veneza”, “Romeu e Julieta”, entre outras. Você pode não saber, mas é do dramaturgo frases como “ser ou não ser: eis a questão?”; e “há algo de podre no reino da Dinamarca”. Embora tenha o mesmo nível de profundidade, os versos “Duvido que ele tenha tanto amor/ E até os erros do meu português ruim” não são do inglês, mas sim de Roberto Carlos.

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Foto: Reprodução

William Shakespeare nasceu no interior da Inglaterra, em Stratford-upon-Avon, em 23 de abril de 1564, e morreu em 23 de abril de 1616, na mesma cidade, aos 52 anos. A família dele não era pobre, mas não era rica, nem ligada à nobreza ou ao poder eclesiástico. Do pouco que se sabe, Shakespeare fez estudos regulares, não foi à universidade, casou-se com uma mulher mais velha, Anne, a quem ele aparentemente não amava e com quem teve três filhos. Morreu famoso e rico, mas não pôde aproveitar todos os prazeres da vida, como assistir Chaves, comer sushi e tomar uma cerveja no Divina Dose.

Em uma Inglaterra que em um século – de 1500 a 1600 – passou de católica para anglicana e vice-versa algumas vezes, com censura oficial, tentativas de assassinato de monarcas e uma expectativa de vida média de 40 anos, eu não tenho dúvida: o dia a dia de Shakespeare teria sido mais proveitoso se ele tivesse, você já sabe: um aspirador de pó, um café passado na hora e um rodinho de pia.

É claro que eu estou baseando os itens na minha própria vida. Em determinado momento da biografia, Greenblatt diz que o poeta deve ter tido momentos infelizes por viver uma paixão proibida. Imagino a cabeça dele, cheia de dúvidas, insegurança, preocupações. Ele não sabia, e nem tinha como saber, mas nada pode aliviar mais uma preocupação do que limpar a casa passando um aspirador de pó.

Eu fiz o teste para comprovar. Os últimos dias foram puxados para mim. Sem saber exatamente o que decidir, optei por aspirar meu pequeno apartamento. O som do motor me impediu de pensar em qualquer outra coisa a não ser que aquele barulho era insuportável. Findados os trabalhos, a dúvida seguia ali. Mas ao menos minha habitação estava limpa.

Shakespeare teve problemas ao emprestar dinheiro a pelo menos duas pessoas. Ele chegou a entrar na Justiça para tentar resolver a questão. Àquela altura, já havia o hábito do chá entre os ingleses, mas do que adiantou isso? Tudo teria sido diferente, quem sabe, se já se bebesse café por lá. Em vez de cobrar o retorno da grana por métodos oficiais, o escritor poderia chamar os devedores para uma conversa apreciando um café. Se isso resolvesse, que ele desse um jeito de colocar algo que estragasse o sabor do líquido. Seria interessante ver em alguma peça a frase “Há algo de podre no gosto dessa bebida amarga”, e aí a história seria diferente.

Não há registro de que Shakespeare tenha tido criados. Nos anos que viveu em Londres e conheceu a fama, morou em um lugar pagando aluguel. Ele escrevia peças, atuava, dirigia, era sócio do teatro e tinha outros negócios – uma vida no mínimo corrida, e não havia Ifood. Não seria espantoso imaginar, portanto, que tudo deveria ser meio caótico na casa dele. Mas tudo poderia ser melhor se ele tivesse um rodinho de pia.

Quem tem o item sabe: nada é mais satisfatório que tirar a água que que está por ali. Depois de lavar o garfo, a faca, o prato; depois de enxugar aquele copo que ficou dias por ali; depois de limpar a panela que cozinhou batata doce durante toda a semana porque você decidiu entrar em dieta pela oitava vez neste ano, passar o rodinho de pia é equivalente a colocar uma coroa na sua cabeça. Ao final de tudo, você é o rei/a rainha dali. E isso pode salvar relacionamentos.

Conheci um cara cujo matrimônio acabou, entre outros motivos, porque ele não gostava de lavar a louça. A mulher dele, minha grande amiga, me disse que ele sempre dizia que o pano de pia não secava de verdade, que o melhor era ter um rodinho, mas que o então marido sempre evitava comprar o item.

Se eles tivessem esse rodinho, não haveria dúvidas do tipo “secar ou não secar: eis a questão?”. Com isso, o casamento talvez ainda estivesse de pé. Mas eles não eram felizes, assim como não eram o nosso poeta e a esposa. Coincidentemente, o nome dele era William. Mas o dela, bem, o dela não era Anne.

Se fosse, estaria mais um drama de Shakespeare e do que para uma crônica.


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Victor Simião, 30, é jornalista e sociólogo. Ele fala sobre livros na rádio CBN Maringá e pode ser encontrado ou no Instagram ou pelo e-mail victorsimiao1@gmail.com

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