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03 de dezembro de 2024

Os piolhos, o ganso e a matemática


Por Prof. Doherty Andrade Publicado 27/02/2024 às 10h06 Atualizado 06/03/2024 às 15h23
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A cidade de Lviv, localizada no oeste da Ucrânia, próxima à fronteira com a Polônia, possui uma história rica que remonta à sua fundação em 1256. Até 1919, Lviv fez parte do território polonês. No início do século XX, a cidade abrigava a renomada Cafeteria Escocesa (Kawiarnia Szkocka), que se tornou um ponto de encontro significativo para diversos matemáticos da Escola de Matemática de Lviv.

Ao longo das décadas de 1920 e 1930, essa cafeteria se transformou em um espaço vital, onde os membros da Escola de Matemática de Lviv se reuniam regularmente. Nesse ambiente estimulante, eles dedicavam horas à discussão de problemas matemáticos desafiadores, bem como à proposição e à análise de soluções inovadoras. Esse cenário dinâmico e intelectualmente estimulante na Cafeteria Escocesa contribuiu para o florescimento da excelência matemática na região durante aquele período.

Era uma prática regular para esses renomados matemáticos se reunirem na Cafeteria Escocesa, desfrutando de café enquanto discutiam apaixonadamente os desafios matemáticos que os instigavam naquele momento. Dentre os ilustres frequentadores, destacam-se nomes como Stefan Banach (1892-1932), Ulam, Stanislaw Mazur, entre outros.

A peculiaridade desse ambiente ia além das animadas conversas, pois era comum que eles deixassem suas acaloradas discussões registradas diretamente nas mesas de mármore do estabelecimento. Entretanto, essa efêmera galeria matemática desaparecia a cada noite, já que o diligente garçom se encarregava de limpar todas as mesas antes do fechamento.

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Banach – Fonte: Wikipedia

Curiosamente, acredita-se que a esposa de Banach, Lucja, tomou a iniciativa de adquirir um caderno para que seu marido pudesse registrar as discussões e soluções elaboradas durante as sessões na cafeteria. Esse caderno, posteriormente apelidado de “Livro Escocês”, foi deixado no estabelecimento, tornando-se o receptáculo das anotações ao longo dos anos. Uma verdadeira relíquia, esse livro preservou as ideias matemáticas valiosas que, de outra forma, teriam se perdido com o passar do tempo.

Algum tempo após as reuniões na Cafeteria Escocesa, as ideias fecundas de Banach, registradas no “Livro Escocês”, encontraram expressão mais ampla. No período compreendido entre 1929 e 1932, Banach dedicou-se à redação de sua obra magistral intitulada “Théorie des Opérations Linéaires” (“Teoria das Operações Lineares”), na qual deu vida a conceitos inovadores.

Esse livro não apenas consolidou as reflexões matemáticas presentes no “Livro Escocês”, mas também introduziu o revolucionário conceito de espaços de Banach. O trabalho de Banach nesse livro lançou as sólidas bases para a teoria dos espaços de Banach de dimensão infinita, desencadeando uma verdadeira revolução na matemática. Sua contribuição transcendental nesse campo estabeleceu um legado e influenciou significativamente o desenvolvimento subsequente da teoria funcional, consolidando o renome de Stefan Banach como uma figura proeminente na história da matemática.

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Alimentador de piolhos. Fonte: Wikipedia

Para contextualizar a vida de Banach em meio aos eventos de sua época, é importante lembrar que ele viveu a turbulenta Segunda Guerra Mundial, um período em que todo homem adulto era convocado para o serviço militar. Além de suas notáveis realizações matemáticas, Banach desempenhou um papel singularmente interessante durante a ocupação alemã. Ele se envolveu em uma atividade notável no Instituto de Estudos do Tifo, alimentando piolhos com seu próprio sangue, uma tarefa crucial para a produção de vacinas na época. Surpreendentemente, essa atividade permitiu que ele continuasse sua pesquisa matemática mesmo em tempos tão desafiadores.

O “Livro Escocês”, que preservava as ideias matemáticas valiosas geradas nas reuniões da Cafeteria Escocesa, apresentava problemas numerados, acompanhados de anotações sobre as ideias propostas. Em alguns casos, também havia registros sobre quem havia resolvido determinado problema. O livro compreende um total de
193 problemas; cada um deles muitas vezes oferecia a motivação adicional de um prêmio. Por exemplo, o Problema 43 valia uma garrafa de vinho, prêmio generosamente oferecido por Stanislaw Mazur. Esses detalhes adicionam uma dimensão interessante à história, revelando não apenas o rigor matemático, mas também o caráter lúdico e desafiador da interação entre os matemáticos da época.

A maioria dos problemas apresentados revelou-se profundamente desafiadora, ultrapassando consideravelmente o entendimento matemático dos anos 1930 e 1940. Muitas dessas questões permaneceram sem resposta até o final do século passado, testemunhando a complexidade intrínseca que caracteriza o panorama matemático proposto no “Livro Escocês”. Apesar de inicialmente parecerem simples curiosidades matemáticas, as técnicas desenvolvidas para enfrentar esses desafios provaram ser ferramentas de grande alcance e importância no campo da matemática.

Um exemplo notável é o Problema 153, destacado no livro, o qual foi proposto por Mazur em 1936 e oferecia a promessa de um ganso vivo como recompensa para quem conseguisse resolvê-lo. Esse problema estava relacionado a uma propriedade específica de aproximação em espaços de Banach. Em 1955, Grothendieck estabeleceu uma conexão intrigante ao demonstrar que, se o “Problema da Aproximação” fosse resolvido negativamente, então o Problema 153 também teria uma solução negativa.

O “Problema da Aproximação” indagava se todo espaço de Banach possuía a propriedade de aproximação, uma característica que já se sabia presente nos espaços de Hilbert. Essa abordagem, que inicialmente visava resolver questões específicas, acabou revelando conexões profundas e interdependências entre diferentes áreas da matemática, demonstrando a surpreendente profundidade das investigações propostas por Banach e seus contemporâneos.

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Mazur e Enflo. Fonte: Wikipedia

Em um momento crucial para a resolução do Problema 153, o matemático sueco Per Enflo desempenhou um papel significativo ao publicar um artigo em 1972, apresentando um espaço de Banach desprovido da propriedade da aproximação. Essa conquista notável também solucionou o desafio proposto por Mazur no “Livro Escocês”. É digno de nota que, em 1972, Stanislaw Mazur pessoalmente entregou o prêmio a Per Enflo, marcando um momento memorável na história da matemática. Há registros fotográficos da entrega do prêmio.

No entanto, a narrativa toma um rumo inusitado quando consideramos os acontecimentos em meio às mudanças geopolíticas. Com o avanço das tropas soviéticas pela Europa, surgiu a preocupação de proteger o “Livro Escocês”. Conta-se que, para resguardá-lo, ele foi enterrado. Infelizmente, a rápida chegada dos soviéticos à cidade após o início da guerra impediu que essa medida de segurança fosse eficaz. Os registros subsequentes no livro indicam claramente a influência dos matemáticos soviéticos, que, seguindo um “protocolo” estabelecido, também ofereciam prêmios por soluções para os problemas ali apresentados. Anos mais tarde, o livro foi devolvido a Lviv, representando um capítulo intrigante e singular na trajetória do “Livro Escocês” e da comunidade matemática da época.

Neste ponto vamos introduzir uma personagem importante nessa história: trata-se da professora Nicole Tomczak-Jaegermann. A trajetória acadêmica da professora Nicole é notável. Ela obteve seu mestrado em 1968 e doutorado em 1974 pela Universidade de Varsóvia. Destaca-se que ela foi uma das estudantes talentosas de Alexander Pelczynski, que, por sua vez, foi discípulo de Mazur. Isso a posiciona como parte integrante da respeitável escola polonesa, que desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da teoria moderna dos espaços de Banach.

A contribuição da professora Nicole para a área dos espaços de Banach foi reconhecida e teve um impacto significativo na Matemática. Para não sobrecarregar o leitor, abordaremos apenas dois resultados importantes obtidos pela professora Nicole que não ilustram muito bem a magnitude de seu trabalho. O primeiro deles está relacionado à propriedade de aproximação, conforme mencionado anteriormente, e o outro resultado trata da homogeneidade dos espaços de Banach.

Como discutimos anteriormente, Per Enflo, na década de 1970, construiu um espaço de Banach sem a propriedade de aproximação. Na década de 1990, Nicole Tomczak-Jaegermann e seu colaborador P. Mankiewicz foram além dessa construção específica, desenvolvendo um método abrangente para construir tais contraexemplos de forma genérica a partir de qualquer espaço não-Hilbertiano. Eles demonstraram o seguinte:

Teorema: (N. Tomczak-Jaegermann, P. Mankiewicz) Se X é um espaço de Banach não isomorfo ao espaço de Hilbert, então l2(X) necessariamente possui um espaço quociente que contém um subespaço sem a base de Schauder.

Outra questão importante abordada pela professora Nicole e um de seus alunos de doutorado é a homogeneidade dos espaços de Banach: o espaço de Hilbert é o único espaço homogêneo de Banach? Em outras palavras, é o único espaço que pode ser isomorfo a todos os seus subespaços fechados de dimensão infinita?

Agora sabemos que a resposta a essa questão de Banach é afirmativa, graças às contribuições independentes e notavelmente complementares de T. Gowers, por um lado, e de Nicole Tomczak-Jaegerman e seu aluno R. Komorowski, por outro.

É fascinante perceber como a história da matemática se entrelaça com experiências pessoais e encontros inspiradores. Em 1998, durante meu período como professor no Departamento de Matemática da Universidade Estadual de Maringá (DMA/UEM), tive o privilégio de convidar a renomada professora Nicole Tomczak-Jaegermann (1945-2022) para uma visita ao departamento. Durante sua estada, ela compartilhou suas experiências e fascinou a todos nós com histórias como essas envolvendo os maiores matemáticos da época.

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Profa. Nicole. Fonte: Wikipedia

Ao longo de sua carreira, Nicole Tomczak-Jaegermann recebeu diversas honrarias, incluindo uma palestra como convidada no Congresso Internacional de Matemáticos (International Congress of Mathematicians — ICM) de 1998, o Prêmio Krieger-Nelson de 1999, o Prêmio CRM-Fields-PIMS de 2006 e a Medalha Sierpinski de 2013. Esses reconhecimentos evidenciam não apenas sua excelência acadêmica, mas também sua contribuição significativa para o avanço da matemática. A visita dela ao DMA/UEM certamente proporcionou um enriquecimento intelectual e inspirador para todos que lhe assistiram.

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