Pílulas: Emma., A Assistente, Eu Me Importo
Durante o ano de 2020, transformei provisoriamente a seção “Pílulas” em “Cine Quarentena”, levado pela ilusão de que essa pandemia duraria pouco tempo. Mas como somos brasileiros e o governo deste país não é só incompetente como também genocida, a condição de quarentena promete ser longínqua, então decidi retomar o nome original.
Na retomada do Pílulas, portanto, comentarei brevemente sobre três filmes em cartaz nos streamings, todos protagonizados por personagens femininas instigantes. São eles: “Emma.” (Net Now/Telecine Play); “A Assistente” (Amazon Prime Video) e “Eu Me Importo” (Netflix).
Certamente as obras literárias da inglesa Jane Austen (1775 – 1817) estão entre as mais adaptadas para o cinema. Tomem como exemplo a existência de uma versão de “Orgulho e Preconceito” acrescida de zumbis e tirem a conclusão. O padrão dos clássicos palatáveis assinados por Austen tem DNA cinematográfico, e serviu como inspiração para o roteiro até de comédias românticas contemporâneas, sendo “As Patricinhas de Beverly Hills” (1995) talvez a melhor representante.
Baseado no romance homônimo, “Emma.” é outra adaptação bem sucedida. O filme é revestido da narrativa refinada da autora, porém é adornado com uma pitada de subversão, tornando o acompanhamento da história batida muito mais atraente.
A diretora estreante Autumn de Wilde, munida de fina ironia em sua execução, brinca com os costumes da época sem se distanciar do material de origem, e assim, promove um equilíbrio sapiente de tonalidade ao projeto – a montagem e a trilha sonora jogam a favor deste efeito. Enquanto o caprichado design de produção e os figurinos extravagantes roubam a cena e contribuem para o apuro visual de “Emma.”, vale a pena destacar os esforços da protagonista Anya Taylor-Joy, que se livra do estigma dos filmes de terror, e surpreende ao emprestar a expressividade de seu olhar para fins cômicos. Após o sucesso conquistado com “A Bruxa” (2015) e com a recente minissérie “O Gambito da Rainha” (2020), a promissora carreira de Taylor-Joy só tende a deslanchar.
O movimento #MeToo veio à tona em meados de 2017 com uma multidão de sobreviventes que quebraram o silêncio e revelaram situações de assédio sexual no ambiente de trabalho. Em Hollywood, o caso mais repercutido foi o do predador Harvey Weinstein, outrora um produtor audiovisual renomado, que hoje amarga os seus dias na cadeia. Após as manifestações públicas, o cinema pegou carona na causa para narrar histórias sobre essas vítimas. “O Escândalo” (2019) e o thriller metafórico “O Homem Invisível” (2020) são alguns exemplares de sucesso provenientes do movimento. Ambos são bons filmes, mas o projeto definitivo e talvez o mais importante de todos em resposta ao #MeToo seja o subestimado “A Assistente”.
A assistente do título é a jovem Jane, a primeira funcionária que entra e a última que sai de um escritório em Nova York. Apenas um dia de sua mecânica rotina de trabalho é o suficiente para mostrar ao público as diferentes formas de abuso às quais a garota é submetida, seja do chefe, da esposa dele, de clientes ou “colegas” de trabalho. Avessa a excessos, a diretora e roteirista Kitty Green é brilhante no realismo que alcança a partir de um retrato conciso, além de extremamente habilidosa em extrair da monotonia um clima constante de tensão e claustrofobia, nos quais o filme é submerso até os créditos finais – a fotografia assinada por Michael Latham é um espetáculo à parte.
Por fim, nasce uma estrela e o seu nome é Julia Garner. Como a personagem-título, a jovem atriz entrega uma das melhores atuações do ano, natural e econômica. Chegar a este nível de interpretação é para poucos.
A comédia dark “Eu Me Importo” acompanha os passos de Marla Grayson, uma empresária vigarista bem relacionada que, com muita lábia e pose de boa moça, consegue a emissão de ordens judiciais para a internação compulsória de idosos em casas de repouso. O motivo defendido por ela e sancionado pelo Estado é de que essas pessoas não têm mais autonomia para se cuidar e precisam receber tratamento adequado. Marla se torna a curadora dos idosos internados, suas “galinhas dos ovos de ouro”, pois assim que eles são trancafiados em asilos, ela e sua equipe vendem todas as suas posses e ficam com o dinheiro. Este é o esquema maligno com que a protagonista ganha a vida. No entanto, de um golpe a outro, ela se mete com a máfia russa, e aí a situação começa a sair do controle.
A premissa do filme é excelente, e de maneira esperta o script do também diretor J Blakeson faz críticas contundentes ao capitalismo selvagem e o modo de apelar à criminalidade para sobreviver na América. Entretanto, no terço final, a trama vira um trem descarrilhado e é sucumbida pelas soluções mais estúpidas e inverossímeis que se pode imaginar, isso sem contar os furos imperdoáveis do roteiro. De uma comédia impiedosa, “Eu Me Importo” se transforma em um filminho mequetrefe de vingança, coroado com um desfecho nada inspirado. É uma pena.
Após “Garota Exemplar” (2014), a atriz britânica Rosamund Pike se especializou em interpretar a megera que o público ama odiar, e é a sua ótima performance que mantém o espectador interessado em um filme inicialmente promissor, mas com que ao final, ninguém mais se importa.