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18 de dezembro de 2025

Resenha: Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre


Por Elton Telles Publicado 05/02/2021 às 21h54 Atualizado 19/10/2022 às 10h21
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O olhar sensível lançado à adolescência é o que guia os três longas-metragens dirigidos até então pela cineasta norte-americana Eliza Hittman. Em “It Felt Like Love” (2013, disponível no Mubi), acompanhamos uma garota que, com o propósito de ter sua própria experiência amorosa, é influenciada a atitudes contestáveis de submissão. “Ratos de Praia” (2017, disponível na Netflix) narra a saga de um jovem reprimido sexualmente que se encontra com homens mais velhos pela internet. Em comparação a estes dois títulos, “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” não se debruça sobre a descoberta da sexualidade na juventude, mas ecoa sobre uma de suas possíveis consequências: a gravidez indesejada.

A trama é enfocada em Autumn, uma adolescente de 17 anos que se descobre grávida e não quer levar a gestação adiante. Na companhia da prima, ela vai da Pensilvânia, onde elas moram, até Nova York para fazer um aborto. A temática inevitavelmente já evidencia o caráter político da produção. No entanto, mais relevante do que se apegar ao questionamento de que o filme é pró-aborto ou contrário a ele, é trazer luz aos grandes acertos das realizadoras, responsáveis por fazer de “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” um projeto tão especial.

O texto é preciso em driblar qualquer fagulha de didatismo ou mensagens panfletárias. Em vez de saídas confortáveis, o roteiro centraliza a sua atenção unicamente no bem-estar e na proteção da protagonista. A preocupação em garantir segurança à jovem é mais importante do que emitir um discurso de militância, e o filme transparece essa postura com clareza. Em nenhum momento, o espectador perde Autumn de vista; estamos sempre seguindo os seus passos e, por conta da competência mútua entre atriz e diretora, compartilhamos da ansiedade e do desconforto que ela sente diante do desconhecido. Ao mesmo tempo, sentimos orgulho pela coragem e convicção da personagem em dar continuidade ao plano que a própria julga viável para a sua vida. 

A jornada, todavia, não tem nada de heroica. Coerente com a proposta desde o início, “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” refuta maiores conflitos para agigantar a sensação dramática da história, até porque duas garotas do interior com pouco dinheiro em uma Nova York desconhecida já é uma situação suficientemente desfavorável. O retrato naturalista e mais próximo da realidade sobre o qual a trama é desenvolvida não tem a intenção de transformar Autumn em símbolo de movimento algum. Não é em bandeiras que o filme se pauta, e sim na empatia e na liberdade de escolha.  

Durante a sessão, me ocorreu a pergunta “mas quem seria o pai da criança?”. E logo essa dúvida se dissipou, porque a paternidade neste caso não importa. Contudo, algumas dúvidas são levantadas porque é notável a ausência da figura masculina conforme a história avança. Quando os homens surgem em cena, a câmera quase sempre os encara com suspeita. Do pai estúpido da personagem central, passando pelos “colegas” de classe, pelo nojento gerente do supermercado em que as meninas trabalham até o turista que elas conhecem em Nova York, nenhum deles é digno de confiança, pois direta ou indiretamente, são agentes que perpetuam diferentes formas de abuso.

Hittman alcança um nível de maturidade impressionante na condução do filme, fundamental para o efeito catártico que determinadas passagens, cruas e sem truques, causam no público. Particularmente, a cena que dá título à obra é desconcertante, e impecável de se notar a autonomia da cineasta em trazer à tona tanta emotividade despendendo de poucas “ferramentas” e concisão narrativa. Trata-se de uma abordagem sutil e que demonstra generosidade com as personagens, porém matadora quando expõe sem alardear as intempéries enfrentadas durante a trajetória das meninas. Um exemplo é o sistema de saúde precário e seletivo à disposição nos Estados Unidos, incapaz de fornecer um quarto para repouso da paciente.

Também é interessante observar o registro que Nova York recebe. Longe de mostrar o glamour de seus edifícios oponentes e pontos turísticos, a Big Apple aqui é representada como uma cidade opressora e pouco convidativa, sublinhada pelas estações de metrô descuidadas, onde as garotas passam grande parte do tempo subindo e descendo escadas. Merece menção especial a sacada extraordinária da diretora de fotografia Hélène Louvart em desfocar as luzes que invadem os espaços, indicando que NY não é lá uma cidade tão acolhedora e nem todo mundo é bem-vindo.

Em sua estreia no cinema, Sidney Flanigan encontra uma excelente tutora em Hittman, cujos direcionamentos em cena renderam uma performance espetacular da atriz novata. O mesmo se aplica à Talia Ryder, no papel da prima e anjo da guarda de Autumn. A química entre as atrizes é a espinha dorsal do filme, e espero sinceramente acompanhar as suas promissoras carreiras daqui pra frente.    

Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim 2020, “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” é uma bela história de rito de passagem no formato road movie. Sobre a temática do aborto, certamente é um dos grandes filmes já concebidos.

“Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” está disponível no streaming do Now.

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Elton Telles

Cinema e divagações, por Elton Telles.