Resenha: Relatos do Mundo
Uma passada de olho na filmografia do britânico Paul Greengrass é o suficiente para concluir que o cineasta é afeito a filmes de guerra ou exemplares em que a tensão é uma constante. O excelente “Domingo Sangrento” (2002), pelo qual faturou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, títulos da quadrilogia Jason Bourne, o relato de um dos aviões sequestrados no 11 de setembro de “Voo United 93” (2006), e “Zona Verde” (2010), sobre a invasão do exército americano no Iraque, não me deixam mentir.
Quando foi anunciado que Greengrass iria comandar um faroeste, logo pensei que seria um daqueles épicos do gênero, com várias cenas de tiroteios e perseguições a cavalo. Na contramão disso, “Relatos do Mundo” se revela um ponto fora da curva em sua carreira, surpreendendo por ser um western modesto e mais intimista, focado sobretudo no apelo sentimental entre seus personagens.
A história é bem simples: Tom Hanks interpreta um capitão veterano de guerra que ganha dinheiro indo de cidade em cidade, no norte do Texas, para ler notícias publicadas em jornais impressos. Eis que uma garota chamada Johanna cruza o seu caminho. Ela fora resgatada ainda bebê por indígenas quando a sua família biológica foi assassinada. O capitão assume a missão de levá-la aos seus familiares sobreviventes, mas durante o trajeto, a dupla vai se deparar com vários perigos, sejam forasteiros fora da lei ou a própria ganância do homem.
Entre momentos empolgantes e outros nem tanto, Greengrass concebe um faroeste bastante convencional. Quase uma releitura do clássico “Rastros de Ódio” (1956), com John Wayne, não há absolutamente nada em “Relatos do Mundo” que o público já não tenha visto em outros títulos semelhantes, e a repetição da fórmula não é necessariamente um problema desde que o resultado seja eficiente no que se propõe. E o filme é bem resolvido neste aspecto, pois a trama segue um ritmo sem grandes modulações, priorizando a dramaticidade da situação em detrimento de grandes arroubos narrativos, e esta abordagem mais emocional é bem conduzida a ponto de fazer o espectador ser solidário com a jornada de Hanks e sua protegida.
A propósito, o roteiro adaptado por Greengrass e Luke Davies confia todas as fichas no relacionamento quase paternal desabrochado entre ambos. É particularmente emocionante acompanhar como um homem que tem seus problemas familiares passados se torna um guardião da garotinha, insistindo na tentativa de fazê-la apagar suas memórias dolorosas e privando-a de toda a maldade que surge para dificultar a viagem. Ambientado em 1870, o roteiro é esperto e cumpre um dever histórico por aproveitar a trajetória dos personagens para mostrar o sentimento de ódio que pairava sobre a nação, principalmente o preconceito com indígenas, mexicanos e a resistência dos brancos com a recém-promulgada 13ª emenda, que pôs fim ao regime escravocrata nos Estados Unidos.

Após “Capitão Phillips” (2013), Greengrass e Tom Hanks retomam a parceria. Acostumado a incorporar o “herói humilde”, pra variar, o ator está ótimo e é muito fácil comprar a sua benevolência, afinal, é Tom Hanks e ele não faz mal a uma mosca. A novidade do elenco é reservada à atriz-mirim Helena Zengel no papel de Johanna, que tem a expressividade a seu favor na composição de uma personagem misteriosa e que vai diluindo o comportamento arisco conforme a história avança.
O departamento técnico de “Relatos do Mundo” é admirável, a começar pela fotografia assinada pelo polonês Dariusz Wolski, que explora diferentes camadas de filtros para dar o tom de iluminação adequado a cada cena. É um trabalho esplêndido, e certamente a direção contribui com a preferência dos planos abertos, valorizando também a soberba constituição dos cenários. O esmero com o complexo design sonoro do longa pode ser identificado nos detalhes, como o som da arma, os barulhos da carroça em que os personagens estão à bordo e o onipresente barulho do vento, por exemplo. Por fim, a sonoridade caprichada do longa também encontra sintonia com a texturizada e fascinante trilha sonora composta pelo veterano James Newton Howard.
“Relatos do Mundo” é um faroeste tradicional, à moda antiga, mais do mesmo, porém mesmo recolhido em sua zona de conforto, a produção é vigorosa em criar conexão com o espectador, além de esteticamente refinada. É o filme ideal para sentar com o pai no sofá da sala e apertar o play.
“Relatos do Mundo” está disponível no streaming da Netflix.

