Adultização Digital: quando a infância é transformada em produto e a lei não acompanha

Era para ser apenas um vídeo fofo. Uma criança de sete anos, dancinha ensaiada, cenário impecável, maquiagem leve mas com um ar maduro demais para a idade. O vídeo atinge milhares de visualizações em poucas horas. Marcas comentam, influenciadores replicam, pais comemoram o “engajamento” como se fosse medalha. Poucos percebem que, por trás daquela postagem, há algo muito mais complexo: a infância está sendo gerida como um negócio.
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Esse fenômeno, chamado por especialistas de adultização digital, não é apenas um reflexo de comportamento ou moda. É um dilema legal, ético e organizacional. E, ao contrário do que acontece no mundo corporativo formal, onde o trabalho infantil é cercado de regras e fiscalizações, nas redes sociais ele avança num território cinza — sem clareza, sem limites e, muitas vezes, sem proteção.
O que a lei prevê e onde ela não chega
A Constituição brasileira proíbe o trabalho antes dos 16 anos, permitindo apenas a condição de aprendiz a partir dos 14. A exceção é o trabalho artístico, como atuação em TV, teatro, cinema e publicidade desde que exista autorização judicial prévia, como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
No mercado publicitário tradicional, essas regras são conhecidas e respeitadas. Agências e produtoras sabem que sem alvará judicial não há gravação. Há limites de jornada, acompanhamento médico e psicológico, e fiscalização.
Mas nas redes sociais, a lógica é outra. Influenciadores mirins muitas vezes gerenciados pelos próprios pais produzem e publicam conteúdos quase diários, sem autorização judicial e sem qualquer controle de jornada. Mesmo sem pagamento em dinheiro, mas em produtos ou vantagens, há caráter comercial. No ambiente digital, o que exigiria trâmites formais no mundo offline se perde na informalidade.
A nova frente legislativa
O tema ganhou força em agosto de 2025, após a denúncia do influenciador Felca sobre o uso indevido de imagens de crianças. Em poucas semanas, a Câmara dos Deputados recebeu mais de 30 projetos de lei para regulamentar a atuação de menores como influenciadores.
Entre eles, o PL 785/25, que propõe autorização judicial obrigatória, limite de carga horária (máximo de 4 horas por dia) e reserva de parte dos ganhos para a criança, liberados apenas na maioridade. Outros projetos buscam responsabilizar plataformas, restringir monetização e estabelecer punições para exposição considerada abusiva.
O Brasil segue países como França e alguns estados norte-americanos, que já têm leis específicas para influenciadores mirins. Lá, a regra é simples: se há receita, há contrato, direitos e proteção.
Marketing, RH e reputação
Pode parecer um assunto restrito ao marketing digital, mas é também uma pauta de gestão de pessoas e compliance.
Empresas que se associam a influenciadores mirins fora da legalidade correm risco de responder judicialmente e prejudicar sua reputação. Além disso, o respeito à infância é um valor social e ignorá-lo fragiliza discursos corporativos sobre ESG, diversidade e bem-estar.
Assim como se protege um jovem aprendiz no ambiente de trabalho, deve-se proteger uma criança que aparece em campanhas ou conteúdos patrocinados. A diferença é que, no mundo digital, esse cuidado ainda não é regra.
O dilema ético
O mais preocupante não é a existência de conteúdos com crianças, mas a naturalização deles. Ao transformar a criança em “marca”, o ambiente digital antecipa pressões, métricas de desempenho e expectativas que nem adultos lidam bem.
Se no mundo corporativo criamos leis para proteger jovens aprendizes, por que aceitamos que crianças de 5 ou 6 anos tenham rotina de influenciadores sem qualquer salvaguarda?
Escolha estratégica e moral
A infância não é um produto. É um direito. Empresas, agências e plataformas precisam decidir se vão esperar a lei fechar o cerco ou se vão liderar pelo exemplo.
Assim como o home office ganhou políticas internas antes da regulamentação, é hora de criar protocolos para trabalhar com menores no ambiente digital. Isso inclui autorização judicial, limite de jornada, acompanhamento psicológico e garantia de que os ganhos sejam revertidos para o futuro da criança.
No fim, a pergunta que ficará para cada marca será: quanto a sua campanha respeitou e protegeu quem estava nela? A resposta vai dizer muito sobre o tipo de empresa que você escolhe ser.
