O cantor e compositor paraibano Zé Ramalho lembra o dia e o local exatos em que pisou no palco pela última vez: 13 de março de 2020, em Criciúma, Santa Catarina. Depois dessa data, os próximos 20 shows já agendados foram cancelados, algo que ocorreu com todos os artistas.
Com o tempo de sobra – e um grande prejuízo financeiro, como menciona em entrevista por e-mail ao Estadão – Ramalho, além de compor novas canções, se debruçou em seus arquivos para finalizar o recém-lançado box de quatro CDs, O Garimpo das Raridades, com criação e seleção de repertório dele próprio e direção compartilhada com Marcelo Fróes, da gravadora Discobertas.
O primeiro CD, chamado de Precioso, traz seis gravações inéditas. Uma delas é a canção O Progresso, de Roberto e Erasmo Carlos. Nele, também há encontros com a turma do rock, como Andreas Kisser, do Sepultura, na rara faixa Em Busca do Ouro, lançada em um disco europeu da banda.
Em Nordestino, há duetos de Ramalho com Luiz Gonzaga, em A Volta da Asa Branca; com Dominguinhos, em Não Vendo Nem Troco; e Hermeto Pascoal, em Violando e Pelejando com Hermeto, música de ambos, além de um remix de Admirável Gado Novo, feita pelo DJ Luís Antônio.
O terceiro deles, Canta Com, é dedicado a reunir duetos de Ramalho. A prima Elba Ramalho aparece na música Ave de Prata, do disco Solar da cantora, lançado em 1999. A gravação ao vivo de Sinônimos, em parceria com Chitãozinho & Xororó, também foi selecionada, além dos encontros com João Fênix, no clássico Avôhai, e com a conterrânea Glorinha Gadelha, em Teima Teima, com quem divide a autoria da faixa.
Por fim, o box coloca no mercado o registro inédito do bem-sucedido show Antologia Acústica, gravado no Canecão, no Rio de Janeiro, em 1997, logo após Ramalho voltar às paradas musicais com a inclusão de Admirável Mundo Novo – a gravação original é de 1979 – na trilha sonora da novela O Rei do Gado.
Ramalho conta que o box só foi possível de ser feito por causa do “vício” que tem de arquivar tudo o que produz. “Eu me orgulho de ser tão organizado! Sei que a maioria dos artistas não tem esse cuidado”, diz. A seguir, o cantor e compositor fala do box, dos discos que ainda quer fazer e da abordagem política e social que faz em suas canções.
No box, é possível ter a dimensão de quanto você já dividiu palcos e estúdios com os mais diferentes artistas. O que esses encontros lhe trazem?
Só boas recordações. Coisas raras, muito raras mesmo, como cantar com Hermeto Pascoal numa gravação tão livre como a que está exposta nesse disco. Todos os colegas que me convidaram estão prestigiados. Gosto muito desse box. São formas diversas em que me sinto à vontade. Muita coisa de rock, muita coisa do Nordeste e até novos parceiros, como Caio Sílvio (compositor cearense), com quem dividi a canção Um Passo e Cai na Garganta. No fim, é uma festa de ritmos e vozes variadas que quem for ouvir vai entender o quanto eu trabalho.
Há um dueto com Luiz Gonzaga, um dos nomes mais importantes da música nordestina e um compositor que sempre está no seu repertório. Fale um pouco desse encontro.
Luiz Gonzaga é, ao lado de Jackson do Pandeiro, um dos maiores artistas da música nordestina de todos os tempos e para sempre! São inventores. Gonzagão inventou a estrutura básica do baião: zabumba, triângulo e sanfona, além da voz poderosa que ele tinha e inspirou todas as gerações que viriam a seguir. Luiz Gonzaga é o rei, é o imperador de toda a música nordestina! Encontrei com ele várias vezes em aeroportos, voos longos e camarins de televisão. Sempre o vi bem-humorado, sorridente e orgulhoso. Cantar com ele é uma honra e faço disso um motivo de orgulho também.
De outro lado está Andreas Kisser, roqueiro, mas que representa a ponte que você sempre fez do rock com a música nordestina. Quando percebeu que ela podia se misturar (ou ser misturada) com Beatles e Bob Dylan?
Depende de quem está misturando. Tem que saber muito para ficar à vontade nessas misturas. Quando digo saber muito, é conhecer o outro lado, o rocknroll, pop-rock e heavy metal. Ouvir discos foi uma coisa que fiz de uma maneira profunda: Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan e também o heavy metal do Deep Purple, Black Sabbath, que são bandas ícones dessa modalidade. O rock me atraiu para o mundo da música. Em 1967, eu estava com 17 anos, garotão, e não sabia o que ia fazer da vida. Nunca imaginei tocar instrumento nenhum, muito menos cantar. Até que comecei a ouvir rádio. Jovem Guarda, Beatles e outros sons. Tudo me levou misteriosamente a aprender a tocar violão. Tive uma orientação básica dos tons mais usados e com o tempo fui desenvolvendo, tocando e fazendo parte de vários grupos na Paraíba. Eram grupos que tocavam em bailes de três horas. Foi uma época de aprendizado e de prática que me deixaram conhecedor de vários ritmos, situações e decisões que eu já tinha começado a tomar. A música nordestina automaticamente foi descoberta por minha curiosidade e também misteriosamente me invadiu facilmente. Andreas Kisser é um músico de grande visão. Nos conhecemos gravando uma música minha, A Dança das Borboletas, para fazer parte da trilha sonora de Lisbela e o Prisioneiro. Foi ele quem se aproximou de mim, cada vez mais, com intenções de novos projetos. Essa gravação (Em Busca do Ouro), que está no box e abre o disco Precioso, faz parte de um disco raríssimo, lançado por ele na Europa (Hubris). E era desconhecida até então aqui no Brasil.
Para esse box, você gravou O Progresso, de Roberto e Erasmo. Como a música deles, em um primeiro momento, com a Jovem Guarda, que trouxe sobretudo a guitarra elétrica para a música brasileira, chegou a você?
Foi exatamente nos grupos de baile que comecei a ouvir Roberto Carlos. Já era um mestre. Tudo o que ele cantava era sucesso. Ele, Erasmo, Renato e seus Blue Caps e Os Incríveis me inundaram de canções alegres que ficaram profundamente enraizadas dentro de mim. No box Canta Com tem a música Não Me Diga Adeus, grande sucesso de Renato e Seus Blue Caps, em dueto com Paulo César Barros, baixista e principal voz dessa banda. A ideia de regravar O Progresso veio de uma procura minha por uma música para abrir meus shows. Quando estava ouvindo a obra de Roberto, parei nessa canção. Ela tem todos os pontos sociais e protestos ecológicos que me fizeram arranjá-la para o meu mundo. Essa gravação que está no box é caseira e inédita. Ela deu origem praticamente a todo o CD Precioso.
O Progresso fala sobre danos ambientais, ganância, comércio de armas. O que pensa sobre essas questões neste momento em que o Brasil vê índices tão grandes de desmatamento?
A questão do desmatamento é uma tristeza. Ao mesmo tempo, é inexorável. O meio ambiente é algo romântico. Preservar florestas e animais é um sentimento natural do ser humano, mas nada disso importa diante dos governos que foram se sucedendo na história da humanidade. Não há como controlar queimadas, nem impedir as serras elétricas de cortarem os troncos das florestas. O que vem a seguir é a nova natureza, que se encarregará de se adaptar ao universo que rodeia os planetas. E nesse universo, estamos no planeta Terra. Tudo o que acontece é a transformação feita pelo homem, não importando as consequências. Tem um disco meu, que traz o show do disco A Peleja do Diabo Com o Dono do Céu, que contém a música O Autor da Natureza – repente do genial improvisador Zé Vicente da Paraíba, que fez parte do meu aprendizado nordestino. Nessa música, tem um dos textos que diz o seguinte: Não há pedra igualmente ao diamante/Nem metal tão querido quanto o ouro/Não existe tristeza como o choro/Nem reflexo igual ao de um brilhante/Nem comédia maior que a de Dante/Nem existe acusado sem defesa/Nem pecado maior que avareza/Nem altura igualmente ao firmamento/Nem veloz igualmente ao pensamento/Nem há grande igualmente à natureza.
Um dos singles que você lançou recentemente é O Meu País. Nela, o personagem diz que fica calado, mas não é mudo. Você não costuma se manifestar ou falar publicamente sobre política. Por que essa escolha?
Não concordo com “não falar de política”, pois Admirável Gado Novo é talvez a música popular mais política que existe. Está tudo ali. Esta canção, O Meu País, é de autoria tripla: Livardo Alves, Orlando Tejo e Gilvan Chaves. Descobri essa canção num disco do grande artista e sanfoneiro Flávio José. O “fico calado” é uma ironia que os autores fizeram a tantas questões sociais expostas na música. Quanto ao conteúdo político, mais uma vez, no meu trabalho, sempre haverá. Na verdade, meu disco mais social-político é o Nação Nordestina (2000). Essas questões políticas, do jeito que eu as abordo, fazem parte das minhas inspirações, não como um todo, mas com a consciência de estar atento a tantas lamentações e sofrimentos do povo brasileiro.
Em Admirável Gado Novo, você é um observador da massa que descreve. Por que se colocou com um espectador?
Porque sou espectador. Nunca me vi fazendo parte da massa, mas sei que ela está ao redor. Isso não é uma posição sofisticada. A vida me expôs assim. Quando eu a fiz, ainda não tinha o que tenho hoje: conforto, família e trabalho reconhecido. O Admirável Gado Novo tem 2 vidas. A primeira, quando ela foi lançada no disco A Peleja do Diabo Com o Dono do Céu, 1979, que foi um fenômeno de execução em todas as rádios do Brasil. A segunda foi, quase 20 anos depois, na novela O Rei do Gado, na qual a mesma gravação se tornou mais uma vez um fenômeno. Vejo-a como minha inclusão no registro de músicas básicas da MPB. Livros e pesquisas confirmam o que estou dizendo.
O álbum A Terceira Lâmina completa 40 anos neste 2021. Como você o avalia com o distanciamento do tempo, sobretudo do ponto de vista da faixa-título?
Ele é lindo! É o álbum da minha meditação social, psicodélica, no qual ofereço uma viagem a todos que o escutam. A faixa-título revela um pressentimento de uma terceira guerra mundial. Daí o porquê a contracapa do disco mostrar uma bomba atômica sendo deflagrada. Esse álbum faz parte do período no qual eu ainda estava me descobrindo como autor de músicas que podiam mexer com as pessoas. A consciência disso me levou a realizá-lo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.