16 de julho de 2025

A primeira fake news


Por Victor Simião Publicado 30/04/2020 às 14h50 Atualizado 23/02/2023 às 05h30
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Era 2006, salvo engano, e eu, uma criança de 11 anos, vivia em Umuarama. Coisas estranhas já haviam acontecido na cidade, claro, como o linchamento público de dois estupradores e um show da Gretchen, mas o que estava para ser visto ainda não tinha tido precedentes na chamada capital da amizade.

Meus pais não costumavam assistir à TV Globo na hora do almoço – e, veja só, num período em que a emissora não era chamada de #Globolixo ou acusada de mentir mesmo quando fala a verdade. Em casa, o canal que nos informava era a TV Amizade, emissora local cujo carro-chefe era o jornalístico “Tatu na TV”. Antes que você, cosmopolita de Maringá-Miami-Paris-Berlim, pense que era um animal quem comandava o telejornal na hora do almoço, me adianto e digo que não. Tatu era um homem, bípede, vindo do rádio e fazendo sucesso na programação umuaramense, apresentando o programa que levava o nome dele. Ao menos em meu círculo de amigos, “Tatu na TV” era o segundo programa mais assistindo por nós; atrás apenas do educativo e inspirador “Cine Band Privê”.

Naquele ano, uma reportagem exibida pelo jornal mostrou que supostamente o proprietário da Honda fizera um pacto com o diabo – e quando eu digo isso, falo precisamente sobre o maligno de verdade, não aquele cuja família está envolvida com milícia. A suspeita apresentada pelo repórter Geraldo Tápia vinha em decorrência de uma suposta cruz de ponta cabeça colocada dentro do farol de motocicletas como a Titan CG 150. Não sei o demônio, mas o mínimo que eu espero de alguém que faz um pacto comigo é um jantar à luz de velas; uma suposta cruz, ainda mais de plástico e de ponta cabeça, não me soa nada atraente.

À época, um dos nossos vizinhos era um proeminente frequentador de uma igreja protestante e assíduo participante da Casablanca, uma casa de shows onde mesmo no inverno a roupa mais quente vestida pelas trabalhadoras do local era uma calcinha vermelha. Esse vizinho, após ter visto a reportagem, disse a mim e a meu pai que nunca mais usaria a moto dele. Impetuoso aos 11 anos, pedi a ele que emprestasse o veículo a mim, então.

– Mas você não tem medo de satanás, garoto?
– Tenho mais medo de ser parado pela Polícia e ter de mostrar meu RG.

Quem foi criança naquele período talvez se lembre. Umas das principais diversões era a chamada brincadeira do copo, em que, por meio de um copo, você supostamente invocava belzebu. E ele, hipoteticamente, lhe daria respostas às questões perguntadas. A primeira e única vez que me chamaram para participar dessa recreação, declinei. Não é porque eu vivia na capital da amizade que qualquer um faria parte do meu círculo.

Certo dia, um grupo de crianças teve a brilhante ideia de usar a cruz de ponta cabeça para, quem sabe, obter respostas mais rápidas do anjo caído. Um desses meninos decidiu que retiraria o item da moto do pai dele. A missão não só deu errado como o menino apanhou até começar a ver o mundo todo de ponta cabeça. Mais: o pai dele foi até a escola onde as crianças estudavam e chamou a todos de burros em decorrência de um prejuízo financeiro.

– A minha moto é uma Yamaha, não Honda. Não há cruz alguma lá!

Soube-se depois que o item amplamente alardeado, cujo nome é Clamp H 25, tinha a função de ser uma espécie de presilha. Me lembro dessa história, a primeira fake news de que me recordo, e lamento. Hoje, mentir e distorcer fatos são ações governamentais. Às vezes, confesso, tenho vontade de fazer a brincadeira do copo para obter respostas, mas tenho medo. Temo que, após ouvir minhas perguntas sobre os motivo que levam pessoas a compartilhar mentiras, o capiroto responda algo como “E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?”.

Cronista do GMC Online, Victor Simião é repórter e colunista de literatura na CBN Maringá. Ele está no Twitter e Instagram. Fale com o autor: victorsimiao1@gmail.com.

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