Simone Bruna de Oliveira, 38, foi diagnosticada com anemia falciforme aos três meses de idade. A infância, em Ivailândia, distrito de Engenheiro Beltrão (a 45 quilômetros de Maringá), foi marcada por crises e dores. Foram 20 anos buscando um tratamento adequado até começar a tomar a hidroxiureia, que é o medicamento usado hoje para pacientes com doença falciforme.
A anemia falciforme é causada por um gene recessivo, que pode ser encontrado em frequências que variam de 2% a 6% na população brasileira em geral e de 6% a 10% na população negra. A doença falciforme é a patologia genética, crônica e degenerativa de maior prevalência no Brasil. Apesar disso, o primeiro relato científico sobre a doença falciforme é de 1910 e a primeira política de saúde para a patologia foi criada apenas em 2005. Ainda há muito desconhecimento em torno da doença, cujos sintomas podem ser confundidos com os de outras patologias. “Às vezes a gente fica no Pronto Socorro e os profissionais não sabem o que é ou não entendem o que é, porque ela causa dores fortíssimas, como se os ossos estivessem sendo esmagados, como se você tivesse sido atropelado, só que ninguém está vendo você sangrando, a dor é interna, e muitas vezes a equipe médica não acredita na dor que a gente está sentindo”, explica Simone.
Espalhando informação sobre a anemia falciforme
Simone se casou, mudou para Maringá e ajudou a criar a associação de apoio a pacientes com a doença no Estado. Ela se tornou uma ativista, palestrando sobre o assunto e divulgando conteúdo sobre a anemia falciforme nas redes sociais. Desde 2016, pelo Facebook, Instagram e Youtube a criadora de conteúdo divide relatos pessoais e faz lives com médicos especialistas. Ao se expor, Simone chegou a milhares de seguidores que dividiam as mesmas dúvidas e angústias. Os seguidores são do Brasil inteiro e até de outros países que falam português, como Moçambique e Angola.
Dois anos depois que ela começou a compartilhar o conteúdo na internet, o filho de Ana Paula Gomes, moradora de Brasília, foi diagnosticado com a doença. O diagnóstico veio no teste do pezinho, ainda na maternidade, mas ela não recebeu orientação médica adequada, e passou a sofrer com as crises do bebê aos três meses de idade.
Foi por meio do conteúdo compartilhado por Simone que a mãe descobriu que o transplante de medula era a única alternativa de cura para a doença. Mas os médicos que ela consultava na cidade de origem desconfiavam do método e desaconselhavam a mãe. Ver tantos especialistas renomados no canal de Simone dizendo o contrário deu forças a ela para não desistir. “Com a indicação, comecei a fazer fertilização, porque precisava de um irmão totalmente compatível”, explica a mãe. Por causa da doença, o filho, Rafael, já tinha perdido o baço e a vesícula.
A luta pelo transplante
No entanto, o que Simone ajudava a divulgar, não servia para ela. O transplante de medula só era recomendado para quem tinha irmãos, porque o doador precisaria ser geneticamente 100% compatível e ela era filha única. Em 2022 ela teve osteonecrose nas duas pernas por complicações da doença. As fortes dores fizeram Simone, que sempre foi muito ativa, parar todas as atividades. A indicação era mesmo o transplante para que a doença não causasse ainda mais estragos no corpo dela.
Mas nos últimos anos uma nova possibilidade de cura surgiu: o transplante de medula haploidêntico, em que o doador não precisa ser 100% compatível, mas apenas 50%. Com essa possibilidade, a criadora de conteúdo passou a buscar na família alguém que tivesse essa compatibilidade e encontrou um primo, que mora em Minas Gerais. O problema é que o Sistema Único de Saúde ainda não cobre esse tipo de transplante, apenas o feito entre irmãos. Simone começou uma luta para ter direito àquilo que lhe daria a cura junto ao plano de saúde. “Eu vi muitos amigos indo embora cedo, morrendo muito jovens. Pela complexidade, a doença acaba levando a óbito muito cedo. A gente tem uma expectativa de vida muito mais baixa do que a da população em geral. Isso me deu a coragem para ir atrás do transplante”, relata.
O primo doou a medula e o transplante foi feito no dia 20 de setembro. Atualmente, Simone está em São Paulo, se recuperando do procedimento, e deve voltar para casa, em Maringá, no final de novembro. Lá, na casa de apoio do hospital, conheceu pessoalmente a seguidora Ana Paula, de Brasília.
O filho de Ana também passou pelo transplante, mas não pela doação de um irmão, porque, depois de 13 fertilizações, nenhum embrião saudável vingou. Ele também só pôde receber a medula após encontrar um primo 50% compatível, como orientaram os especialistas no canal de Simone Bruna. Hoje o pequeno Rafael está prestes a ter alta para voltar para casa em Brasília. “Foi no canal da Simone que eu descobri porque o olho do meu filho ficava amarelo, entre outros sintomas. Eu assistia as lives dela com médicos como a doutora Adriana Seber, e tirava minhas dúvidas. Quando encontrei com elas no hospital e na casa de apoio, foi como se estivesse encontrando um artista, um ator, um cantor, porque eram pessoas que a gente acabou tendo uma convivência virtual, que me ajudaram naquele momento difícil, foi uma emoção muito grande”, relembra.
“Para quem doa, é como doar sangue, e para quem recebe é a salvação”
A hematologista Adriana Seber é referência na área e é ela quem acompanhava Simone. De maneira didática, ela explica como a anemia falciforme age no corpo e como o transplante reverte esse quadro. “A anemia falciforme é uma doença genética. Então, o paciente herda do pai e da mãe a tendência genética para essa anemia falciforme e é um defeito na composição da hemoglobina. É uma proteína que tem dentro dos nossos glóbulos vermelhos e quando tem essa mutação genética dentro da hemoglobina. Ao invés dela ser uma proteína bem molinha, uma hemácia bem molinha, quando abaixa o oxigênio, a hemoglobina fica dura e repuxa a parede do glóbulo vermelho e ao invés dele ficar um disco molinho que passa por todas as nossas artérias, a hemácia fica em forma de foice. Por isso a gente chama de anemia falciforme. E essas hemácias que ficam em forma de foice, elas enroscam umas nas outras e elas fazem uma obstrução, elas entopem as artérias no corpo. Isso faz faltar sangue em vários lugares do corpo, que é o que faz os sintomas na anemia falciforme”.
Entre as consequências estão quadros que afetam prioritariamente as crianças e outros que podem acompanhar o paciente ao longo de toda a vida, se agravando ao longo do tempo. “Essas hemácias entopem a artéria nos ossos e fazem um quadro que na mãozinha e no pezinho no bebê chama dactilite, que é muito grave, uma doença só de bebê. Na criancinha também, quando existe obstrução no baço, chama ‘síndrome de sequestro esplênico’: o baço cresce de repente e pega um monte de sangue, e a criança fica muito doente. É um quadro muito grave, que pode até matar. Aí no decorrer do tempo, começa a aparecer infarto ósseo, então os pacientes têm muitas crises de dor em vários lugares do corpo, porque falta sangue nos ossos, isso causa extrema dor, que nem se fosse uma dor de dente horrível, só que em vários lugares do corpo. Essas alterações sanguíneas podem acontecer também nos rins. Os pacientes têm perda de proteína pelos rins na urina, podem ter problemas renais, pode acontecer obstrução nas artérias do cérebro e causar derrame ao acidente vascular cerebral. E no decorrer da vida, as artérias do cérebro vão ficando machucadas, podem fazer aneurismas e aí o paciente pode ter derrame, pode ter acidente vascular cerebral hemorrágico. São várias particularidades e é uma vida muito sofrida”, detalha a médica.
“Como as hemácias, os glóbulos vermelhos, são produzidos na medula óssea, que é a fábrica do sangue, se uma pessoa faz transplante de medula óssea, ela pode curar da anemia falciforme. Tendo a hemoglobina normal, ela vai parar de ter crises de falcização e vai parar de ter as manifestações muito ruins da anemia falciforme”. No entanto, diferente de outras doenças, no Brasil, as doações de medula em caso de anemia falciforme só podem ser feitas entre parentes. “Os transplantes não aparentados no Brasil são regulamentados por uma portaria. No momento em que foi escrita essa portaria, os resultados dos transplantes não aparentados para falciforme não eram bons, e por isso a doença não foi incluída como indicação de não-aparentado”, explica a médica.
Mas se existe alguém da sua família que precisa da doação e você pode ajudar, não recuse. “Para quem doa, é como doar sangue, porque a medula se restitui em 30 dias, e para quem recebe é a salvação. Eu vou ter qualidade de vida e uma vida nova daqui para frente”, comemora Simone Bruna, incentivando que mais gente se disponibilize para se cadastrar como doador. “Quero continuar nessa missão de ajudar as pessoas a também chegarem até a cura”, diz, olhando para o futuro.
Pioneirismo
Em 2021, Maringá criou o Programa de Atenção à Doença Falciforme e distribuiu as primeiras carteiras de identificação. O projeto, apresentado no Dia Mundial de Conscientização da Doença Falciforme, é pioneiro no Paraná. A identificação garante mais qualidade no atendimento aos pacientes. O pedido da carteira de identificação da pessoa com doença falciforme deve ser feito nas unidades básicas de saúde.