
Aos 67 anos, a viajante maringaense Roseli Jardim conheceu 13 estados brasileiros e rodou por outros três países nos últimos três anos – tudo isso a bordo de um carro pequeno, sozinha, contando apenas com a companhia dos bichos de estimação em parte do trajeto. Todas as viagens são bancadas apenas com a aposentadoria que recebe.
Ela trabalhou no comércio por boa parte da vida, foi casada por 25 anos, criou dois filhos e viu os três netos crescerem. Depois de se separar, se mudou para um pequeno contêiner, uma quitinete, no terreno de um irmão, mas o sonho, de verdade, era fazer a vida caber na mala. “Eu sempre tive vontade de viajar, nunca acreditei que a vida da gente tinha que ser nascer, casar e morrer no mesmo lugar sem conhecer nada. Só que eu achava que para mim não ia dar certo, que o que eu ganho não ia dar, que o carro que eu tinha para viajar não ia dar, que era tudo muito difícil, achava que eu não ia conseguir. Até que em um período de 2022 eu falei: ‘eu vou’”, conta a viajante.
Sem carro grande, sem motorhome, sem mesmo fazer uma grande economia para juntar uma reserva financeira, ela entrou no Chevrolet Onix 1.0 que dirigia acompanhada de um galo e uma cachorrinha de estimação e pegou estrada sem destino certo e sem data para voltar. “Eu viajava muito pelo olho das pessoas, via bastante vídeo, seguia as pessoas. Mas as viagens que eu fiz, sempre foram de excursão da igreja, com muita gente, todos conhecidos, nunca assim sozinha”, conta. Aos filhos, Roseli disse apenas que viajaria até Porto Seguro, na Bahia, mas não deu muitas explicações. Porém o sentimento que vivia dentro dela, a aposentada lembra até hoje. “Chega de ver vídeos das pessoas, eu quero ver com os meus olhos. E eu queria ir por terra para ir conhecendo as pessoas, vendo as pessoas, sentindo as pessoas. E fui indo”.
Viajante sem roteiro
A primeira parada foi em Brasília, de lá, seguiu para o Espírito Santo passando por Minas Gerais e, depois, começou a subir pelo litoral nordestino, chegando até o Maranhão. No banco de trás, em uma gaiola, seguia o galo que ela tinha em casa e havia comprado para “pegar escorpiões” e no banco do passageiro seguia Fada, a cachorrinha que chegou na vida de Roseli ainda filhote. “Fui parando por aí, comprei uma barraca, cozinhava nas cozinhas comunitárias, principalmente nos campings, e eles ficavam passeando dentro dos campings”.
Mas a primeira sensação, ao fechar a porta do carro sem rumo e sem volta certa, era uma só: medo. “Medo do dinheiro não dar, da falta de segurança… Mas até chegar em Brasília, eu já estava toda empolgada. Mudou a minha visão. Me achei muito mulherão. Para mim foi muito vibrante. O Brasil é lindo e a gente precisa de muito pouco pra viver. A gente não precisa depender de ninguém pra fazer viagens, conhecer lugares. Não precisa ter medo”, afirma a maringaense, ao relembrar o primeiro passo para se tornar “cidadã do mundo”.
O percurso durou sete meses e, pela estrada e nas paradas, ela ia fazendo amizades, não se sentia só. A vida na estrada acabou enchendo a viajante de coragem. “Isso me deu uma certeza de que eu sou capaz, que eu consigo fazer. Então foi isso que eu acho que mudou muito para mim”. Roseli só voltou para Maringá porque o irmão, com quem ela dividia o terreno onde vivia na cidade, faleceu. A experiência de viver em um carro mostrou que, mesmo morando em uma quitinete, ela tinha muito mais coisas do que precisava. “Principalmente nós, mulheres, somos muito acumuladoras. A gente compra muita roupa, muito sapato. Eu vi que eu tinha roupa demais, tinha louça demais, tudo tinha demais. Eu não preciso de tudo isso pra viver”, percebeu.
Próxima parada: “fim do mundo”
Roseli bolou um novo roteiro inicial, se desfez do que tinha, doando móveis para os filhos e deixou o galo de estimação na casa de um deles, que morava no sítio. O galinho acabou morrendo tempos depois, atacado por cães, mas a cadelinha Fada, já idosa, estava novamente no banco do passageiro quando, em fevereiro de 2024, a maringaense embarcou na nova aventura com um destino em mente: Ushuaia, uma cidade turística na Argentina que fica no arquipélago da Terra do Fogo, no extremo sul da América do Sul, conhecido como “fim do mundo”.
O sonho parecia distante, mas aos poucos, ela foi percorrendo o Sul do Brasil. Passou um tempo em Urubici (SC), ficou um período em Gramado (RS), passou por Uruguaiana, saindo das terras gaúchas e, em janeiro de 2025, entrou na Argentina.
Ao chegar ao país vizinho, ela se apavorou. “O coração saiu da boca e correu na frente. Era uma nova língua, e fui sem falar espanhol, sem nada. Pensei: ‘como é que vou lidar com dinheiro?’, porque a Argentina está mais cara, realmente, que o Brasil. Mas eu falei assim, se todo mundo vai, eu também vou. E eu fui aprendendo a fazer as conversões de real para peso e fui indo, fui descendo pela Patagônia”, conta.
Roseli conheceu dois casais de catarinenses e um de baianos pelo caminho e todos seguiriam para Ushuaia. Decidiram ir juntos. “Quando eu vi a placa de Ushuaia, eu delirei. ‘Não acredito que eu tô aqui’”, se emociona a viajante ao relembrar.
Uma despedida dolorosa
Uma semana depois, a maringaense decidiu se separar do grupo, porque queria conhecer uma rota que não fazia parte do roteiro deles: a Carretera Austral, uma rota cênica famosa pelas paisagens deslumbrantes, incluindo montanhas, geleiras, lagos e florestas, e que é considerada uma das estradas mais bonitas do mundo. Normalmente, essa rota é feita a partir de Puerto Montt, no Chile, mas Roseli faria o trajeto em sentido inverso.
Chegando no Chile, em um local sem muita estrutura, a cachorrinha de estimação de Roseli, que já tinha problemas cardíacos, teve uma crise. Sem veterinários por perto, com quase 12 anos, Fada não resistiu. “Aí foi que eu segui sozinha, sem ela. Chorei muito por essas estradas à noite, sentia falta dela”.
Apesar da tristeza, a viajante decidiu seguir. Foi até o deserto do Atacama, porém cruzando o Chile, em um trajeto não convencional. “O Chile é muito lindo. Encontrei muitos brasileiros, encontrei muita gente boa, fui muito amparada, muito acolhida’. Roseli conta que ouviu até de viajantes profissionais, como caminhoneiros, que eles não teriam a mesma coragem que ela tem, em desbravar as estradas sem roteiro definido e sem nenhuma companhia ao lado. “Mas eu, graças a Deus, fui”, se diverte.
No Atacama, um dos pontos que Roseli mais gostou foi a escultura “Mano del Desierto” (Mão do Deserto), uma obra do artista chileno Mario Irarrázabal. “Quando eu vi aquela mão no deserto, falei ‘gente, eu não acredito que eu cheguei aqui’. Eu cheguei aqui com minhas pernas, com os meus recursos, sozinha, só eu bancando e dirigindo o meu carro”, diz, orgulhosa. Em todo esse tempo na estrada, com mais de 20 mil quilômetros rodados, o carro em que ela vive não deu um único problema mecânico.
Do Chile, a viajante maringaense passou pela Cordilheira dos Andes e seguiu pela Ruta 40, na Argentina, até o Uruguai e voltou para o Brasil para poder comprar remédios de uso contínuo que, segundo ela, são caros demais nos países vizinhos. Aqui, vai aproveitar para fazer um checkup médico para garantir que a saúde está em dia. Ela entrou pelo Chuí, no extremo sul do Brasil, passou um tempo em Pelotas (RS), seguiu para o litoral gaúcho e conversou conosco diretamente de um camping em Gramado, onde ela passou as últimas semanas. Depois dali, Roseli segue sem saber para onde vai. “Não tenho roteiro, sabe?”, ela resume.
A vida dentro de um carro
A intenção de Roseli é trocar o Onix que a acompanhou até aqui, e que tem servido de casa no último ano e meio, por um carro mais espaçoso. Mas não é para carregar mais coisas, não, já que ela garante que, muito do que levou para a viagem, acabou nem usando. “Tem um monte de coisa que está ‘passeando’ comigo”, ri a viajante. Entre os itens que ela realmente usa estão duas panelas e alimentos básicos como arroz e leite em pó. O banco foi adaptado para virar uma cama e, embaixo dela há um nicho para guardar roupas, calçados, e os crochês, que ela faz pelo caminho. “Em cima eu tenho uma barraca, uma caixa com linhas, material de que nas artesanato, e o carrinho da Fada, que ainda está comigo”, detalha. Ela cozinha nos espaços comunitários dos campings ou faz café nas paradas na estrada, usando um pequeno fogão portátil. Os banhos são também nos campings e postos de combustível. Entre os próximos destinos de sonhos a serem realizados está uma viagem à Portugal, de onde veio o pai de Roseli, e um tour pelo Peru, além de novas rotas pelo Brasil. “Eu não pretendo parar. Meu porto seguro é dentro do meu carro”, afirma.
Porém, diferente de outros “nômades”, Roseli não quer ser influenciadora, nem divulgar fotos e vídeos das viagens nas redes em busca de curtidas e engajamento – os registros ficam para a família apenas, além de grupos que reúnem mulheres viajantes para encorajá-las. “Eu tenho o Instagram e tenho o Facebook e coloco alguns posts, mas ser influenciadora eu não quero. Eu não sei fazer vídeo, não sei editar vídeo, não sei fazer corte de vídeo. E quem faz esse tipo de coisa perde muito tempo vendo o que tem em volta. Eu quero desfrutar. Até meus filhos, que estão esperando minhas fotos e meus vídeos, eu quero é que eles venham ver com os olhos deles. É só tomar a iniciativa, não se preocupar com tanta coisa, sabe? Não deixar o medo te paralisar. Não deixar tantas dúvidas te impedirem de fazer as coisas”, aconselha a vovó aventureira.