Quando o lendário cirurgião sul-africano Christiaan Barnard gritou em africâner: “Dit gaan werk!” (ele vai funcionar!) no dia 3 de dezembro de 1967, ao terminar na Cidade do Cabo o famoso transplante que mudou a história da Medicina, ninguém imaginava que meio século depois o médico brasileiro Diego Gaia, de 41 anos, da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), seguiria na viagem científica coração adentro com um cateter levando uma válvula cardíaca de tecido bovino acoplada a um stent para instalar, pela primeira vez em humanos, uma prótese especial na aorta.
Apresentada em um congresso em Paris em maio, a técnica foi selecionada entre os oito melhores, em um universo de mais de 1,4 mil trabalhos. Também foi premiada como “Melhor Caso do Ano – 2019” em um congresso internacional sobre válvulas que ocorrerá em novembro deste ano.
“Até pouco tempo, a substituição da válvula do coração e da aorta ascendente, que sai do coração, nos obrigava a abrir o peito do paciente, parar o coração e colocá-lo na máquina coração-pulmão para podermos realizar a substituição, com risco grande para o paciente e longa recuperação”, diz Gaia em entrevista ao Estado, em São Paulo.
A Medicina já permitia o tratamento só da válvula ou só da aorta de maneira endovascular, por cateterismo, sem a necessidade de abertura do peito do paciente, que dificulta a recuperação. A inovação foi “juntar as duas tecnologias e criar uma prótese única para substituir a cirurgia convencional, chamada de Bentall”, explica Gaia.
“Por ela ser feita de maneira endovascular, passamos a chamar de Endobentall”, diz ele. O implante desse avanço científico, sob protocolo experimental, ocorreu em um hospital de Assunção, no Paraguai, onde mora Sebastiana Mendieta de Colmán, de 65 anos, paciente que já havia passado por outras sete cirurgias cardíacas. Planejada por uma equipe durante pelo menos seis meses, a operação feita por Gaia durou 6h30.
O trabalho do médico dentro do coração consumiu quatro horas. O cateter entrou por uma abertura de 5 centímetros ao lado do peito da doente, levando a nova engenhoca cardíaca, de tecido pericárdio de boi e metal nitinol (liga de níquel e titânio), compactada em laboratório. O acesso foi na ponta do coração (ápice) e seguiu através do ventrículo esquerdo até o local da calcificação da aorta a ser corrigido. Lá, monitorada por aparelhos, a prótese foi liberada, expandiu-se e voltou à forma original, com o auxílio de um balão, normalizando o fluxo do sangue. “Nós não tínhamos segunda chance”, comenta.
De acordo com o cardiologista Enio Buffolo, também professor da Unifesp, a técnica usada por Diego Gaia é original. Ele afirma que a iniciativa ainda não pode substituir tratamentos nem deve ter uso imediato na população, mas destaca que é um avanço importante para a medicina cardíaca e já foi reconhecida na comunidade em fóruns mundiais.
“Essa prótese especial foi desenvolvida para a paciente sob prescrição dos médicos”, afirma o engenheiro Rafael Braile, diretor da Braile Biomédica, de São José do Rio Preto, interior de São Paulo, que produz válvulas cardíacas, stents e outros equipamentos há 40 anos. A solução para esse caso foi desenvolvida em parceria com Gaia. A cirurgia foi “pelo modelo compassivo”, ou seja, uma doação, conta o cirurgião.
De Assunção, pelo telefone, dona Sebastiana conta que, nove meses depois da cirurgia, está bem de saúde. “Sem restrições de alimentação, a não ser as da hipertensão e de diabete”, explica ao Estado. “Mas nenhuma restrição sobre a cirurgia da prótese”, diz a funcionária pública.
Sebastiana não se cansa de agradecer aos médicos. Lembra que já havia passado por outras cirurgias, duas delas com peito aberto. Diz ainda que, depois dessa vez, teve alta da UTI em três dias. Explica também que faz caminhadas, tem vida normal, mas toma remédios contra tromboses.
Alto risco
Segundo Gaia, a nova técnica, indicada para pacientes de alto risco, pode beneficiar milhares de pessoas com complicações cardíacas. “Os dados dos Estados Unidos (2006-2011) mostram cerca de 30 mil casos e índices de mortalidade de 11,7%.” Com mais de mil cirurgias desde 2007, o professor explica que o avanço vai além das trocas de válvulas da aorta com mau funcionamento, como a aorta de porcelana (alta calcificação) – caso de Sebastiana.
Essa delicada ousadia científica no interior do coração permite que um novo tipo de cirurgia prolongue uma vida usando válvulas transcateter e stents, como em um jogo de videogame. Hoje, próteses podem durar até 20 anos. Para além disso, é possível executar correções “valve-in-valve” – uma válvula dentro de outra já instalada – também sem necessidade de abertura do peito
Avanço
Para o médico Domingo Braile, de 81 anos, criador da empresa produtora da prótese Endobentall, o sucesso da técnica mostra que o momento é de formação de novos profissionais e a Medicina avançou bastante no tratamento de pacientes de alto risco cardíaco.
Braile conta que a empresa foi criada em 1977. Ele foi aluno do lendário Euryclides Zerbini (1912-1993), que menos de um ano depois do feito histórico de Barnard (1922-2001) realizou em São Paulo o transplante de coração brasileiro. Foi exatamente a ciência aplicada por Zerbini em maio de 1968 que terminou por levar o governo paulista a investir no centro médico, referência mundial.
“Zerbini falava que, se não fôssemos capazes de fazer insumos, jamais teríamos cirurgia cardíaca no País”, lembra Braile. “Hoje, o Brasil é o segundo país em cirurgia cardíaca, atrás só dos Estados Unidos e sem dinheiro.” O transplante de coração continua sendo necessário para casos de insuficiência cardíaca, diz ele, pois “32% das mortes são por doenças cardiovasculares”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.