23 de março de 2025

Porque amanhã é sábado


Por Victor Simião Publicado 20/03/2025 às 13h53
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É um grupo pequeno, de quatro meninos. Um deles carrega uma bola na mão. Sobem uma rua que, ao final, tem um campinho. Com toda a certeza, vão jogar futebol. Eu os vejo enquanto saio de casa. É um fim de tarde de sexta-feira, e um deles diz uma frase que capta os meus ouvidos: “porque amanhã é sábado”.

bola
Foto: Beto Barata/Divulgação

Essas palavras mexem comigo. Daí em diante passo a imaginar o que os outros meninos disseram para terem ouvido aquela resposta. Um deles deve ter falado: “não posso ficar até tarde, tenho que estudar”; o outro: “amanhã eu preciso ir para a escola fazer prova”. A resposta tirava-lhes qualquer margem de incerteza: não se preocupem com nada disso “porque amanhã é sábado”.

Deduzo que a piazada deve ter uns 10 anos no máximo. A maior preocupação deles de fato é a tarefa, a escola no dia seguinte. Os tempos mudaram, as famílias também. Quando eu era criança, minha maior preocupação era a de não deixar o chinelo virado pra cima – eu não queria que minha mãe morresse. Eu também ficava preocupado em saber quem seria a capa daquela revista no mês seguinte, mas isso é outra história.

“Porque amanhã é sábado.” Fico com a frase na cabeça e, confesso, ela não sai de mim. Não sai nem mesmo quando, na academia, num exercício para bíceps, coloco mais peso do que deveria e, em vez de me xingar, xingar o professor que está de conversa mole com a casada em vez de me auxiliar, lembro que, no mundo, naquele momento, há garotos e garotas cuja única coisa que lhes ocupa a cabeça é chutar uma bola e nada mais.

Aos 10 anos de idade, cuidar da saúde ainda não é uma preocupação. Você pode comer todo e qualquer tipo de bobagem e seu corpo dá conta. Exercício é coisa de velho. Aos 10 anos de idade, ninguém precisa se vestir com roupas estranhas, ir a um espaço cheio de pessoas suadas, ouvir música ruim e ainda ter de esperar o professor parar de falar com as alunas – ele as ajuda até para encher a garrafa d’água! – para, quem sabe, te explicar o exercício. À distância, claro.

Eles são crianças num fim de tarde de sexta-feira. Eles não precisam se preocupar com a noite de sexta-feira e consequentemente sair de casa em busca de alguma aventura em algum bar insalubre, com uma banda tocando e gente esquisita; não precisam abrir os aplicativos de conversas e, como quem não quer nada, responder aquela mensagem de 114 dias atrás só para tentar puxar assunto com a pessoa e ver se ela topa um encontro; não precisam ir em um karaokê cantar “Se a lenda dessa paixão faz sorrir ou faz chorar/ O coração é quem sabe” – ok, ok, isso é triste, embora eles ainda não saibam.

Eles não precisam acordar cedo para trabalhar. Não precisam ir ao mercado comprar comida – porque sempre tem alguma coisa para comer na casa do pai/mãe. Não precisam pagar aluguel, condomínio, conta de luz, ou a conta maior no bar caso tenha ficado por último. Eles não precisam saber quais são os debates da moda, não precisam ter opinião formada (é bom que já saibam que a terra é redonda) e nem mesmo decorar a senha de acesso ao celular, do aplicativo do banco, do cartão de crédito, do cartão de débito, da portaria do prédio, do e-mail, do Insta – mas que eles aprendam desde cedo que usar o mesmo código para tudo é um risco enorme.

Fico pensando que um dia eles vão crescer e a bola será deixada de lado. Nessa fase, vão ter muitos amigos, mas boa parte irá embora. Vão ter namoros, e, se tudo der certo, todos, menos um, vão passar. Eles vão trabalhar em empregos melhores e piores, mas sempre vão se lembrar que aquilo é trabalho. Vão se dar conta que o aquecimento global existe. Que o salário às vezes não chega ao final do mês. Que haverá gente que irá apenas trair sua confiança. Caso tenham filhos, vão ter dificuldade em dormir à noite quando eles estiverem fora de casa; e irão se assustar quando perceberem que, num piscar de olhos, as crianças também cresceram (mas seguem morando com você e não querem trabalhar!). E quando tudo, enfim, estiver concluído, eles vão morrer.

Calma, eu sei. Parece que sou fatalista. Ok. Eu sou, mas nem tudo é tristeza.

Eles vão crescer e perceber que ter gente querida por perto faz tudo ser mais fácil. Que viajar é bom – e mesmo as presepadas se tornam boas histórias. Que o Carnaval pode servir para tudo, inclusive para não se fazer nada. Que olhar para o céu e perceber a imensidão do universo é assustador, mas nos lembra da nossa existência. Que o importante não é quantidade, mas qualidade. Que os dias podem ser felizes assistindo a um filme, lendo algo ou só jogando conversa fora. Que rir será sempre a segunda coisa mais gostosa do mundo. Que nunca houve e nem haverá alguém como Reginaldo Rossi e seus versos que revolucionaram o amor. Que o Bar do Zé tem a melhor porção de batata de Maringá. E que, apesar de tudo, vale a pena viver.

Eles vão viver tudo isso, mas não hoje e nem amanhã. Porque amanhã é sábado.


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Victor Simião, 30, é jornalista e sociólogo. Ele fala sobre livros na rádio CBN Maringá e pode ser encontrado ou no Instagram ou pelo e-mail victorsimiao1@gmail.com

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