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08 de maio de 2024

Um breve e delicioso retorno às minhas memórias afetivas gastronômicas


Por Marcos Cordiolli Publicado 01/07/2022 às 19h49 Atualizado 19/10/2022 às 10h47
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A Rua Riachuelo de hoje que ainda habita na minha memória afetiva. Foto: Marcos Cordiolli

Eu morei em Maringá até os 15 anos. Naquela época tínhamos uma grande autonomia de ir e vir pela cidade. Caminhando, pedalando ou de ônibus urbano, que por aqui – ainda – é chamado de circular.

Nestas idas e vindas passávamos por vários pontos de venda de alimentos e fui estabelecendo relações com a comida estimulados pelos aromas e situações peculiares da minha infância e adolescência.

A minha primeira – e forte – memória é da taça da sorveteria oriental que ficava na Rua Santos Dumont. A visita a Sorveteria Oriental era um motivo de festa quando anunciada pelo meu pai. Éramos oito, a mãe, o pai e mais seis filhos. O tempo entre a ocupação da mesa e a chegada da taça de sorvete – sim, os sorvetes eram servidos em taças – parecia uma eternidade a espera do paraíso. O precioso destas taças não era o sorvete, mas o caldo que ficava ao final.

A vaca preta: sorvete com Coca-Cola. Foto: Reprodução

Algum tempo depois, a Oriental passou a servir Banana Split – uma generosa travessa de sovertes e caldas com – lógico – bananas bem maduras. Também, incluiu a vaca preta – uma mistura de Coca-Cola com sorvetes. Em todas elas o caldo, ao final era o que – de fato – atraia a minha vontade e realizava o meu prazer gastronômico.

Banana Split: sorvete, caldas e bananas. Foto: Reprodução

Na Avenida Colombo, na altura, penso eu, das proximidades do atual Moinho Vermelho havia um laticínio que atendia ao publico servindo frapê de coco. Uma parada obrigatória – e desejada – pela família. O Sérgio, o meu segundo irmão, algumas vezes convencia o atendente a servir o resto da espuma que ficava no jarro do liquidificador. Ele ficava muito feliz, pois tomava dois copos: um – de fato de frapê – e o outro apenas de espuma. Talvez pelo anúncio que ele fazia da conquista, eu passei a ter uma memória mais afetiva pela espuma. Anos depois comprava o coco ralado e adocicado para bater com leite. Fazia pequenas porções, mas deixava mais tempo no liquidificador para ter bastante espuma… O interessante é que a espuma tem uma sensação gelada sobre a língua com uma textura que se dilui rapidamente. Produz uma sensação de que o frapê está fugindo da boca.

Das lembranças da infância, as que mais me trazem recordações saudosas são as coxinhas da pastelaria da Dona Dora. A Dona Dora morava a duas datas da minha casa na Rua Santos Dumont. Ela fazia doces e salgados para festas. Depois abriu uma pastelaria – por pouco tempo – na Avenida Riachuelo, quase na frente de um antigo stand de tiro ao alvo que distribuía guloseimas e cigarros para experts atiradores com espingardas de pressão. A coxinha, possuía uma casquinha crocante, com uma massa de mandioca mole e o recheio de frango com muito sabor. Era visível a salsinha e cheiro verde macerados e bem misturadas ao tempero. A mistura do crocante, com o cremoso, com recheio firme e condimentado produzia um efeito único na boca.

Um detalhe notável: osso da asa do frango era usado como suporte da coxinha ao invés dos palitos de hoje. Por algum motivo, a massa grudava neste osso de galinha. Após devorar a coxinha, ganhava-se o direito de roer aquela preciosa casquinha de farinha que envolvia as pontas daqueles ossos… As vezes, eu deixava de lanchar no colégio por dois ou três dias para comprar a coxinha pastelaria da Dona Dora.

Eu sou um fanático pela coxinha de frango de mandioca até os dias de hoje. Quando Miguel Fernando foi secretário municipal de cultura cheguei a sugerir a ele que a coxinha de galinha – uma iguaria local ímpar – fosse certificada como patrimônio imaterial de Maringá. Décadas depois, quando voltava de Curitiba, o meu pai ia me buscar no aeroporto, mas ao invés de irmos para casa na Zona 3, seguíamos pela rodovia Silvio Magalhães Barros até o trevo entre o Iguaraçu e Angulo. Numa lanchonete de posto de gasolina pedíamos coxinhas de galinha. São também excelentes e com o recheio bem temperado. Pela tradição, a coxinha deve ser acompanhada por pingado de café com leite, como o pastel de feira quando é servido bem cedo.

Coxinha de Galinha. Foto: Reprodução

O Adilson Tavares tem – também – boas lembranças da Pastelaria da Dona Dora. Ele disse que foi com a Dona Dora que aprendeu que rissoles e pastel americano eram o mesmo salgado. Por algum motivo que ainda não descobri, naquela época o rissoles da cantina do Colégio Santo Inácio era vendido como pastel americano, hoje na feira, é chamado de marajá… Sincronicidade ou não, a casa aonde a Dona Dora morava e fazia dos doces dela era no fundo da residência do Toninho e da Laudir Sala. Hoje um dos netos deles – o Mateus Sala – é um dos mais requintados chefs de cozinha da cidade. Sempre que vou ao espaço gastronômico do Mateus – o Help na Cozinha – diante da harmonia de texturas e sabores que ele entrega em cada prato e da fusão de aromas que inunda o ambiente. Esta tênue coincidência faz com que eu me lembre das texturas e dos sabores da coxinha da Dona Dora sempre que eu vá ao Help na Cozinha. A delicadeza das comidas preparados pelos dois – mesmo com diferenças de conceitos e separados no tempo – parecem ligados por uma tênue ponte na minha memória afetiva em função desta coincidência que, parece que, somente eu tenho notado e tenha experimentado estas vivências gastronômicas.

No último ano do antigo primeiro grau eu frequentava o Colégio Osvaldo Cruz e tinha um amigo, o Sojhi. Sempre íamos estudar na casa dele ali na Rua Joubert de Carvalho. Na esquina, uma senhora manteve por muitos anos um carrinho de cocada e quebra-queixo. O quebra-queixo, em particular, ativava a minha vontade. Muitas vezes parava e ficava olhando para os doces. Ela sempre dizia: “- Ou compra ou pula fora! Não é para ficar olhando..”. Apesar da vontade, eu nunca comprei o quebra-queixo. Um dia, passei pelo carrinho, ele estava com as portas abertas para atender alguns clientes. O aroma era muito forte e – logico – agradável. Eu, então, parei diante do carrinho com os olhos fixos no quebra-queixo. Deveria estar parecendo com um cachorro diante de uma daquelas máquina de assar frangos…A mulher com o mal humor característico perguntou se eu queria comprar. Acho que disse “não”, mas eu era tão tímido e tinha tanta vergonha que – creio – nem som a minha foz produziu…

Ela pediu para ir até ela. O quebra-queixo ficava numa fôrma, cortado em quadrados. Um deles estava quebrado, ela pegou aquele pedaço e me deu. Sem o guardanapo de papel. Peguei direto com os dedos. Ela ordenou: “- Agora some!”. Sai caminhando. Lembro de ter olhado para o doce e a calda que escorria por meus dedos. Parei num ponto de ônibus próximo da gráfica Matioli e comi o doce demoradamente. Lambi os dedos. Voltei para casa feliz da vida. Nunca esqueci o sabor e a sensação da calda escorrendo pelos meu dedos.

O Quebra-Queixo é ainda muito comum ser comercializado na rua. Foto: Reprodução

Ali na Avenida São Paulo, na esquina com a Mauá, na frente da antiga Cobal, hoje o Shopping Avenida Center, funcionou por muitos anos uma panificadora. Era da família de um amigo – o Milton – que estudou comigo no Colégio Gastão Vidigal. A padaria vendia pão doce com um tanto de creme amarelado e com uma leve cobertura transparente açucarada. Nunca esqueci esta combinação do crocante açucarado com o creme e sensação da maciez do pão. Este é um produto típico das padarias na época, porém, o desta padaria, na forma as três partes permanecia no meu paladar ficou registrado para sempre na minha memória.

Entre as casas de pães, ainda lembro do aroma de uma panificadora que existiu por anos, ali na Avenida Riachuelo. Ela foi cenário de uma história, hoje cômica mas na época trágica, na minha vida. Eu com cerca de dois anos fui a feira com o meu pai, lá eu vi patos vivos à venda. Contaram que eu fiquei encantado com as aves. Aquela época morávamos na Avenida Brasil. Eu, então, com dois anos, resolvi voltar a feira para ver os patos. Sai pelo portão da frente. A minha mãe, que a época tinha os segundo filho com meses de idade, quando notou a minha ausência entrou em desespero. Mobilizou toda a vizinhança. Aquela época era comum banheiros com fossas e poços de água nos quintais das casas. Conta-se que olharam em diversos deles, temendo que o pior havia acontecido comigo. Por fim, nesta história, eu saí pelo portão da frente, subi pela avenida Brasil, pela providência divina atravessei as duas mãos da avenida Riachuelo. Alguma boa alma percebeu a criança perdida e me deixou na padaria. O proprietário ou atendente me recolheu. Cerca de uma hora depois, o meu pai, em desespero, me avistou, na porta da padaria com uma fatia enorme de bolo. Desesperado, me abraçou, eu disse com uma linguagem rudimentar que estava indo a feira ver os patos…

Aquela padaria continuou a fornecer pães para a minha família por mais de duas décadas. Minha mãe sempre solicitava que eu fosse comprar pão naquela padaria, em que o aroma era sempre de pão recém saído do forno. Lembro que a senhora que trabalhava no caixa, vendia as baguetes embrulhadas em papel de tipo craft e alertava: “- Cuidado para não queimar a mão! O pão acabou de sair do forno.” O aroma era tão intenso, que mesmo morando a menos de 200 metros, eu retirava grande nacos do miolo do pão e comia pela rua. A minha mãe, por sorte, também tinha o mesmo hábito. Ela também arrancava um naco pequeno do pão – ainda quente – e comia. Depois, cada um pegava um fatia do pão, picava em pedaços bem pequenos, colocava em uma tigela, cobria com leite e muito açúcar cristal. O pão recém saído do forno praticamente se dissolvia no leite… O ponto ficava muito próximo a um creme desigual. Saudades que ainda trago das tardes da minha infância.

Entre todas as lembranças que aguçaram o meu paladar na infância existe uma que eu nunca provei. Seria, digamos, uma espécie de paixão gastronômica platônica. A minha mãe sempre contava – com imensa memória afetiva – de um sanduiche que ela comia quando ela era pequena e morava no sítio da família na Estrada do Guaiapó. O pai dela vinha – de carroça – com alguma regularidade para Maringá, na época ainda um distrito de Mandaguari, fazer compras de tecidos, calçados, fermentas e alimentos. No retorno, o meu avô levava um sanduiche de peixe. Era peixe frito colocado em pão um pouco maior que os franceses da atualidade.

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A minha mãe contou estas histórias tantas vezes, que eu passei a imaginar – e desejar – este sanduiche. Nem ela sabe ao certo onde o meu avô o comprava, a referência era a de que seria em um bar da Avenida Brasil próximo à Praça Rocha Pombo.

Hoje, mais de cinco décadas depois, estes aromas e sabores habitam a minha memória afetiva. São tão nítidos – e as vezes – até mais fortes que na época em que os apreciei. Diversas vezes busquei por estes sabores que, porém, foram únicos, como toda experiência gastronômica. Únicos e imortais.

Sobre o colunista: Marcos Cordiolli é maringaense que imigrou na adolescência para Curitiba e de lá para outras cidades. Teve, no entanto, a felicidade de voltar a morar na sua quinta década de vida em Maringá. Agora, como um flanner, está redescobrindo a cidade e seus encantos. Foi encantado pelo café na casa da avó paterna que produzia blends com grãos de diversas origens que ela mesma torrava e passava em grandes bules que permaneciam o dia todo sobre o fogão a lenha espalhando aromas por toda a casa.
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