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23 de novembro de 2024

DIREITO AO REPARO


Por Rogel Martins Barbosa Publicado 20/08/2021 às 23h02 Atualizado 20/10/2022 às 14h46
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UM DILEMA

Direitos e deveres mantêm uma relação conflituosa entre si, de modo que o que se põe como detentor de um direito não admite que seu direito não seja respeitado por quem incumbe o dever de cumprir.

A relação conflituosa se estabelece porque nem sempre quem se vê como detentor de um direito detém este direito e nem sempre o cumpridor de um dever entende que tem um dever a ser cumprido, mas tem um direito a negar seu cumprimento. E enquanto existir a humanidade este dilema permanecerá entre nós.

O dilema permeia, penetra ou mesmo macula o substrato do reparo, que chamam de direito ao reparo.

Vamos analisá-lo sob o ponto de vista fático, do como as relações entre coisas e pessoas se realizam para ao final ver sob o foco do direito, mais como elemento de justiça, do que de direito, enquanto forma de atuação estatal.

O INIMIGO DO REPARO

O reparo é inimigo da obsolescência programada. Então falemos do inimigo. Especula-se que em 1924 foi criado um cartel das maiores empresas produtoras de lâmpada do mundo, o chamado Cartel Phoebus, que também poderia ser Phantom, considerando que os participantes nunca reconheceram oficialmente sua existência.

Phoebus no mundo jurídico era uma empresa suíça, sediada em Genebra, a Phoebus S.A. Compagnie Industrielle pour le Développement de l’Éclairage, que existiu de 1924 e 1939 tendo como sócios a General Electric, OSRAM, Philips e Lâmpadas Teta. 

Na pratica esta empresa definiu com seus acionistas a redução do tempo de vida útil das lâmpadas, com a finalidade de promover mais vendas.

Hoje damos o nome a isto de obsolescência programada, ou seja, tornar algo ultrapassado, defasado, imprestável, antes do seu tempo real de vida útil.  O que justifica a obsolescência programada?

UM ARGUMENTO

O principal argumento é manutenção da demanda e por consequência mantém a viabilidade da oferta de produtos, mantendo empregos, principalmente em tempos de crise, quando a dinâmica econômica contribui para a diminuição da produção.

Com produtos cujo ciclo de vida seja muito longo, a demanda em crise que é pequena, torna-se menor ainda, dificultando sua superação. 

Mas a obsolescência não é apenas reflexo de uma programação. Um exemplo é a miniaturização de componentes eletrônicos.

A miniaturização de componentes em produtos significa um uso cada vez maior de chip e placas menores. Esta miniaturização que permite economizar em custos e promove melhor relação custo benefício, por outro lado, quando menor a placa e o chip, mais difícil seu reparo e, portanto, mais descartável o produto.  

TUDO CUSTA

Também é uma questão de custo na sua relação simples. Para lembrar a questão das lâmpadas. Atualmente em Dubai a Philips produz lâmpadas de led com uma vida útil 40 vezes maior que uma lâmpada de led comum.

Elas são mais caras que as comuns e só são produzidas e comercializadas em Dubai porque o governo local garante o monopólio da Philips e também repassa subsídios para sua produção.

Isto significa que sem a intervenção estatal e distribuição de custos com toda a sociedade, a produção por si só seria um negócio inviável mercadologicamente falando.

INDÚSTRIA 4.0

Outro argumento agora diretamente voltado ao reparo e por consequência, leva a obsolescência antes do tempo, é uma questão de software.

A indústria 4.0 se caracteriza pelo alto índice tecnológico de seus produtos, produzindo cada vez mais produtos inteligentes, que podem ou decidir por si ou facilitar decisões de seus possuidores.

Um exemplo está na indústria automobilística e na de maquinários agrícolas.

Mais do que peças a serem repostas, temos um software que gere estas máquinas. O grande argumento é de que não se pode abrir o código fonte destes softwares sob pena de comprometer a segurança, não só do veículo ou maquinário que precisa reparo, como de outros veículos ou maquinários de outros consumidores.

Este argumento já se estende a geladeiras, fogões, etc., que estejam interligados na IoT.

UMA QUESTÃO CULTURAL

Por fim, há a questão cultural de uma geração ansiosa, que não suporta um produto durável em suas mãos, porque necessariamente sente a necessidade de troca por outro, ainda que sendo o mesmo, mas tendo um desenho diferente. É o caso da indústria automobilística, de smartphones, para citar alguns exemplos.

O reparo é a possibilidade de sobrevida, do uso pelo tempo necessário de seu possuidor sem a interferência nas sombras do fabricante.

O reparo é regra em bens de alto valor agregado, como um avião por exemplo. Durabilidade é a regra nestes casos, sendo inclusive projetado o avião para sofrer uma atualização e aumentar sua vida útil, sofrer o que chamamos de retrofit.

NOVOS DILEMAS

O primeiro dilema sobre o direito ao reparo e o dever de permitir o reparo passa pela autonomia da vontade do consumidor. Não adianta, por exemplo, o estado obrigar a reparar, se o proprietário, o consumidor do produto não quiser. Este é um ponto inflexível.

E neste momento o produto pode se tornar resíduo no conceito estático: aquilo que não tem mais valor para o seu possuidor e ele quer desfazer dele.

Caso o consumidor queira reparar, quais as implicâncias disto? O reparo tem característica de reparo para uso imediato e também como restauração, passando o elemento/produto reparado ter um conteúdo histórico.

DURAÇÃO RAZOÁVEL

Quando você adquire um bem, presume que ele tem uma duração razoável. É razoável que um automóvel dure ao menos por 20 anos se imaginarmos que no Brasil, após este tempo, o estado deixará de cobrar o imposto por estar circulando, ou seja, por ficção jurídica está interpretando que este veículo se tornou inservível.

Este mesmo automóvel após 30 anos deixa de ser considerado um automóvel em si, para satisfação de seu objetivo de deslocamento de pessoas, para ser entendido como bem histórico colecionável, conforme estipula a legislação brasileira a este respeito.

Ora, se não for garantida a possibilidade de reparo, um automóvel deixará de existir muito antes do tempo razoável considerado pelo senso comum (que pode variar entre sociedades).

Não se permitir o reparo, quando o bem se tornar histórico colecionável, vai implicar na proibição da geração futura ter acesso real aos elementos históricos de seu passado.

Não basta ver um carro, é necessário vê-lo funcionando para compreender o que significou em seu contexto histórico.

MAIS UMA ESCOLHA ALÉM DO REPARO

Além do próprio direito ao reparo, temos o direito de escolher quem repara. Esta discussão por exemplo já chegou aos tribunais americanos com agricultores e a fabricante John Deere de máquinas agrícolas. 

A fabricante se opõe ao reparo que não seja feito em suas autorizadas, com o argumento de que não pode abrir o código fonte do software de suas máquinas, por questões de segurança.

Expostos tantos argumentos ainda não fechamos a questão: existe um direito ao reparo? Se existe como fazer vale-lo?

Existe sim, porque é da essência da compra de um produto o tempo razoável de sua duração, mas este direito é uma relação que deve ser de mercado e não de lei, pelo menos num primeiro momento. Vejamos.

A SOLUÇÃO AO REPARO

A solução de mercado é o vendedor/fabricante do produto ao vender o produto expor o quanto tempo ele garantirá que este produto poderá ser reparado e depois do tempo previsto, se permitirá a abertura do código fonte do software gestor deste equipamento.

O consumidor ao comprar vai avaliar se diante do que está sendo oferecido este produto é caro ou barato, conveniente ou inconveniente.

Se o fabricante não permite o reparo, o consumidor comprará ciente disto, como comprando um produto descartável. Se o fabricante garante o reparo, então deverá cumprir sua obrigação de reparo nos termos que se obrigar, inclusive se permitindo terceiros repararem o produto.

O descumprimento disto pode então gerar o direito ao reparo e passível de ser exigido judicialmente.

Não acredito em leis que venham dar prazos, porque a tecnologia não se submete à legislação, ela sempre avança, e acabaríamos por fazer o cartel de Phoebus às avessas, com resultados tão ruins quanto os do cartel original.

Rogel Martins Barbosa, doutor em Direito dos Resíduos, palestrante, autor de diversas obras, dentre as quais Filosofia do Lixo: Ensaio para compreensão da nossa sujeira. Editor do canal Resíduos Meio Ambiente e Estado e da Escola de Resíduos.

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